sexta-feira, julho 29, 2005

O Manuscrito de Buenos Aires

Aos sábados de manhã, havia esse ruído permanente que o traía: uma espécie de ventania vinda do canal, os táxis que avançavam até às portas de San Telmo, cafés abertos desde muito cedo, os jornais abertos sobre a mesa do Café de la Plaza – e os alfarrabistas que, na verdade, detestava. Era o seu sexto sábado em Buenos Aires desde que decidira levar até ao fim a pesquisa e, como acontecia todas as vezes, encontrava aquele cego passeando ao longo da Calle Defensa, misturando-se com os turistas, guiado por uma jovem demasiado séria, de cabelos compridos e vestida como há muitos anos devia estar vestida uma mulher mais velha, a quem ele segurava o braço como se fosse ele a dirigir-lhe os passos, e não o contrário, ele a empurrá-la nesta ou naquela direcção e não o contrário, entre as pequenas orquestras que tocavam tangos no meio da rua – um violoncelo, um piano, dois violinos, um bandoneón –, escapando aos vendedores de antiguidades. Encontrara-os sempre àquela hora. Por uma vez aconteceu que ambos, o velho e a jovem, se sentaram a uma mesa do café da Plaza Dorrego, e ficaram por ali durante uma hora: ela, segurando-lhe a mão por baixo da mesa; ele, como se olhasse ou pudesse olhar as pessoas que entravam no café, movendo a cabeça quando alguém arrastava uma cadeira ou quando um empregado passava mais perto, transportando a sua bandeja com cervejas. Tinham-lhe dito que era um poeta. Melhor, que fora um poeta – não publicava um poema há mais de trinta anos embora fosse cumprimentado pelos outros poetas e o seu nome figurasse em dois dicionários enciclopédicos sobre a Argentina do século XX. Por mera curiosidade, um dia entrara numa livraria da Recoleta e abrira o terceiro volume, onde na letra C constava o nome de Evaristo Cárdenas, nascido a 24 de Agosto de 1927 em Buenos Aires, autor de três livros de poemas, o último deles Los Tangos Porteños, fora publicado em 1964. Tomara nota dos títulos no seu caderno e teria de arrancar a folha – um homem meticuloso como ele não gostava de ver o nome de Evaristo Cárdenas, um velho romântico que escrevera sobre os tangos de Buenos Aires e a heráldica espanhola, no meio das mais recentes anotações sobre o assunto que dominara a sua vida nos últimos dois anos. Um homem meticuloso como ele. Um intelectual europeu, professor em licença sabática, casado e medianamente respeitado como é possível ser respeitado um professor português de uma universidade de província. Um homem que decide aproveitar a sua licença sabática para viajar até Buenos Aires e dedicar-se a esclarecer uma das suas obsessões principais. O encontro com essa obsessão, de resto, fora um acaso, tão acaso como o encontro sem sentido nenhum com Evaristo Cárdenas – mas estava decidido a seguir até ao fim e enfrentar o ridículo daquela esperança que já nem sequer era literária e que se aproximara de uma mania que aos outros poderia parecer cómica.

Cervantes não era uma personagem cómica. Ele pensava assim. E fora Cervantes que o trouxera a Buenos Aires. O capítulo XXIV do livro primeiro do Quijote lançou a primeira das suas suspeitas porque os amores e as histórias cruzadas de Cardenio, Luscinda, Doroteia e Dom Fernando faziam supor que Cervantes, o cómico, e não Cervantes, o eterno, tinha brincado com a própria literatura. Essa foi a sua primeira impressão, e havia um enigma evidente nesse episódio, que era um rodopio sobre a liberalidade com que o próprio Miguel Cervantes de Saavedra tinha tratado em romance das coisas reais do seu tempo. Anagramas. Ele aprendera a desconfiar dos anagramas. Nomes cifrados. Existiam às dezenas no Quijote. Existiam às dezenas em Cervantes. Porque Cervantes e o Quijote eram familiares – ambos confundiam o leitor, misturando e realidade com a ficção, o que seria normal, e o assunto não mereceria mais do que duas páginas cheias de lugares-comuns acerca da utilidade material da literatura e sobre os processos de composição do romance. Vira muitos professores, investigadores, assistentes da universidade e simples curiosos, dançar sobre andaimes acerca da contiguidade entre realidade e ficção. Sobre todos os assuntos, esse era o mais desinteressante no caso da ficção – e o mais enigmático no caso da realidade. Dedicara anos de estudo a esse episódio e sempre imaginara Cervantes ludibriando a realidade, vingando-se – como todos os grandes escritores – de uma parte da sua vida. O que o preocupava não era o facto de a história de Dom Fernando ter sido real alguma vez, mas a existência daquelas palavras de Sancho. Ele recordava-as: “Digo de verdad que es vuestra merced el mesmo diablo, y que no hay cosa que no se sepa.” Não há coisa que não se saiba, de facto – Sancho alertaria Don Quijote para os perigos de denunciar Cardenio como o cordobês Cardenas, mortificado pela traição de Lucinda com Dom Fernando, antes de se refugiar na Serra Morena. E que Dom Fernando seria um Pedro Girón enamorado de Maria de Torres nessa Andaluzia de 1580. No final tudo se compõe, e Dom Fernando casa-se com Dorotea enquanto Cardenio, aliás Cárdenas, vê regressar Lucinda aos seus braços. O episódio é conhecido e vulgar. A meditação sobre a moral da sua história é ainda mais desinteressante. Só que.

Esse “só que” havia de transformar-se num gigantesco “no entanto” durante uma bela tarde de Outono, quando a universidade se preparava para reiniciar as aulas depois de uma interrupção de Novembro. Uma luz amarelada e tépida tomara conta do seu gabinete, rodeado de livros, pilhas de papéis, caixas com anotações que tinham sobrado do seu último artigo sobre Sterne, correspondência que nunca tinha aberto, revistas académicas cujos assuntos raramente o interessavam. Sterne tinha escrito sobre Cervantes; era uma das ligações inesperadas – mas também eram as de Machado, Twain, Conrad, Dostoievski ou Thomas Mann. Sterne, no Tristram Shandy (oh, sim, Livro IX, capítulo 21) tem uma passagem onde menciona o seu idolatrado Cervantes. É curta e sempre se perguntara porquê tão curta. Mas o Tristram Shandy tinha capítulos colossais, capítulos curtos, capítulos enigmáticos e, também, capítulos que não existiam. Machado de Assis e Almeida Garrett também. A ideia de existirem capítulos que não existem levou-o mais longe e, sobretudo, muito mais longe do que poderia imaginar. Foi nessa tarde de Outono que, ao decidir dar uma ordem a esse amontoado de papéis, e começando pelas revistas académicas, entre as quais muitas que escondeu cuidadosamente numa caixa de cartão que devia ser enviada para a reciclagem – foi então que abriu aquele exemplar de uma revista de Buenos Aires e onde descobriu o artigo sobre “La literatura que no existe”. A tese do autor, um até aí ignorado Rodríguez Tiberi, mencionava justamente Cervantes e começava com uma citação de Jorge Luis Borges, uns versos de El otro, el mismo, o seu livro de poemas de 1964. O que lhe chamou a atenção foi esse parágrafo fatal, que copiou, traduziu e acabou por afixar no quadro de cortiça que decorava uma das paredes do gabinete: “É possível que muitos autores tenham, como Cervantes no Quijote, limitado a sua obra ao que se podia conhecer na sua edição. Não ao que foi de facto escrito. Fragmentos desaparecidos de obras invulgares e definitivas poderiam ser destruídas se fossem conhecidos esses manuscritos nunca utilizados – a isso foram os autores obrigados pelos seus editores, pelo poder do Estado, da Igreja ou da sua consciência ou conveniência. O que sabemos do Quijote ou das suas primeiras edições permite apenas suposições. Mas a história literária ocidental teria sido diferente.” Esta passagem interessou-o durante algumas semanas, tanto mais que não se recordava da existência de excessivas polémicas sobre o original de Cervantes. Mas só isso. Só uns meses mais tarde, num encontro sobre edição de manuscritos do século XVIII, em Salamanca, pôde conversar com Lucas Corso sobre Rodríguez Tiberi e sobre eventuais rumores acerca de Cervantes ou dos seus manuscritos. Corso era conhecido como um caçador de edições raras e, muito frequentemente, as universidades e as bibliotecas – embora desconfiassem dele e temessem ver-se associados ao espanhol – recorriam aos seus serviços, que eram bem pagos e geralmente pisavam o risco da ilegalidade. Esse conhecimento datava de há alguns anos, quando Lucas Corso rondou Lisboa no meio de uma investigação sobre um manuscrito de Dumas.

“Tiberi é um homem misterioso, ensina na universidade de Buenos Aires mas, como todo o argentino, pode ser encontrado em qualquer lado, em Santiago como em Paris, em Reikjavík como em Salamanca”, dissera Lucas Corso, à noite, no bar do Hotel Byblos, bebendo um derradeiro Bombay apenas com gelo. “Não confies demasiado nele. Nunca fiz negócios com Tiberi, mas se há alguma edição rara em Buenos Aires, ele ouviu falar dela.”

Só quando saíram para o Passeo Carmelitas, sob aquela tepidez de Salamanca no final da Primavera, onde há sempre um ruído de fundo, ele lhe perguntou se sabia de alguma ligação de Tiberi a Cervantes.

“Não”, disse o espanhol enquanto se desembaraçava de um cigarro que acendera apenas um pouco antes. “Não sei.”

Passaram-se alguns meses antes de começar o seu período sabático, logo depois de Fevereiro. Nesse período não teve notícias de Lucas Corso – e estas chegaram na segunda semana de Março através de um email lacónico e curto onde lhe dizia que Rodríguez Tiberi tinha morrido e que o seu espólio – manuscritos, cartas, edições raras – estava à venda em Buenos Aires. Não havia catálogo algum mas supunha-se que seria rico, curioso e, ao que se sabia, disputado.

Na vida inteira, no destino de um homem – que muitas vezes é apenas absurdo –, há decisões dramáticas e sérias. E há outras que não merecem explicação. Uma delas foi o pedido de uma bolsa de curta duração, feito há meses, e que lhe permitiria passar algumas semanas em Buenos Aires, desde que encontrasse um pequeno hotel num dos bairros antigos. A justificação seria, naturalmente, Jorge Luis Borges – e, claro, a sua relação com Cervantes. Por razões obscuras, o seu pedido foi aceite e partiu em finais de Abril para Buenos Aires. Divorciado, os filhos na universidade, a vida sentimental reduzida a encontros de ocasião com mulheres bibliófilas ou moderadamente assexuadas, pôde partir sem essa sensação de deixar atrás de si uma ausência muito notada. Tinha um visto de seis meses, que não iria utilizar, duas malas com roupa e uma mochila com o computador portátil. Buenos Aires entrava no Outono.

Ao fim de uma semana, alojado nos limites de San Telmo, conhecendo já a Biblioteca Nacional, as livrarias de Belgrano e os restaurantes baratos do bairro, pôde marcar a primeira entrevista com Alicia Goye, uma das curadoras encarregue pela família de Rodríguez Tiberi de se desfazer do espólio do velho professor e bibliófilo. Ela pediu desculpa por não poder recebê-lo no escritório, porque estavam a fazer algumas reformas, mas sugeriu o Café Britânico, ao fundo do Parque Lezama, exactamente no encontro entre as calles Defensa e Brasil. Era uma mulher de cabelo curto e ruivo, vestida como ele esperava que acontecesse com uma bibliotecária de trinta e cinco anos – acrescentando ainda uma mantilha negra e uns olhos castanhos, profundos, silenciosos.

“Digo de verdad que es vuestra merced el mismo diablo, y que no hay cosa que no se sepa.”

Foi o que ele disse. Ela sorriu.

“Sancho Panza em Buenos Aires. Você é Sancho Panza?”

Ele estranhou que Alicia Goye reconhecesse a passagem, ainda por cima no seu castelhano que nunca fora propriamente famoso. Mas estranhou ainda mais que ele tivesse dito aquela frase depois de lhe apertar a mão, ainda de pé, olhando para aqueles olhos profundos, silenciosos. Ela riu, mais do que sorriu. E ele sentou-se, concentrando-se – evitando os olhos daquela mulher cuja voz lhe parecia tão fantástica como o próprio facto de ele estar em Buenos Aires.

“Disse-me que está a estudar Borges.”

“É um pretexto.”

“Todos os pretextos são bons quando se trata de vir a Buenos Aires. Borges e Sábato, Ernesto Sábato. Eles não se davam muito bem, mas foi neste café, segundo se diz, que Sábato escreveu um dos seus romances. Isso incomoda-o?”

“Não. Mas o meu verdadeiro interesse é o Quijote.”

“Para isso terá de encontrar Pierre Ménard. Borges atribuiu-lhe a verdadeira autoria do Quijote. Não vem a este café.”

“Sim, mas sei que o professor Tiberi tinha muito interesse em Cervantes. E no Quijote, naturalmente. Digamos que estou muito interessado em saber se existe algum material sobre o assunto no espólio do professor Tiberi.”

“Ah, o espólio do professor Tiberi, como lhe chama, é ainda um volume disforme de papéis e de livros. Daqui a uma semana será um amontoado de caixas. E só daqui a um ano será um catálogo ordenado que valha a pena consultar.”

“Até agora não encontrou nenhum referência a Cervantes ou ao Quijote.”

“Com as devidas distâncias, a biblioteca do professor Tiberi é uma espécie de biblioteca de Jorge de Burgos.”

“Falta-lhe o Jorge de Burgos.”

“Há um Jorge de Burgos em cada um de nós”, riu ela. “O livro de Aristóteles não está lá, descanse. Estaria guardado no cofre de um banco. Ou desfeito em cinzas.”

“O que eu procuro pode estar guardado no cofre de um banco. O Quijote é um assunto demasiado sério.”

Ela também ficou séria e afastou a chávena do café, apoiando os cotovelos na mesa:

“O senhor é o terceiro interessado na edição do Quijote do professor Tiberi”, ela muito seca, aqueles olhos profundos, uma madeixa de cabelo caindo sobre a testa.

“Quem são os outros?”

“Não posso dizer-lhe. Estaria a violar um segredo, a ser desleal para com os outros concorrentes e a menosprezar a minha própria capacidade de fazer negócio. Disso depende a minha vida, compreende. Três concorrentes. É demasiado, neste momento.”

“Eu disse-lhe Cervantes de cor, citei-lhe o Quijote. Essa passagem. Não mereço que me diga mais alguma coisa?”

“Nem imagina o que fizeram os outros para merecer mais do que um encontro no Café Británico. Hoje em dia faz-se muito pela literatura. Tenho de me contentar com a minha posição de intermediária. A família do professor Tiberi não entende nada de livros. Se estivessem diante de um manuscrito de Cervantes deitavam-no no lixo. Estava velho e não se entendia nada.”

“Por que falou num manuscrito de Cervantes?”

“Eu falei? Buenos Aires é uma cidade fantástica, mesmo para nós, porteños. Faz-nos dizer coisas sem sentido. Ou talvez fosse porque me citou uma fala do capítulo XXV. Cardenio está desesperado e odeia Fernando e Luscinda. Sancho está mais tranquilo. Gostei de conhecê-lo. Telefone-me daqui a duas semanas, quando tiver avançado na sua investigação sobre Borges.”

E saiu, arrastando consigo aquele perfume, cumprimentada pelos empregados do café, ajeitando a mantilha negra que contrastava perfeitamente com o tom ruivo do seu cabelo. Na rua, enquanto ouvia a música de uma orquestra de rua que se despedia da tarde de Buenos Aires, mergulhando no crepúsculo, pareceu-lhe ver um rosto conhecido – por instantes julgou que fosse Lucas Corso, o que atribuiu a uma influência literária traiçoeira, uma vez que, no hotel, começara a ler a edição em espanhol de O Clube Dumas, de Pérez Reverte.

Voltou a vê-la duas semanas depois, exactamente no Café Británico, exactamente à mesma hora, mas já não tinha importância. Durante uma semana tentou, em vão, reconstituir os acontecimentos dessa parte do Quijote. Uma tarde, quando se sentou a uma mesa do café da Plaza Dorrego, lendo jornais e bebendo cerveja, foi surpreendido pela presença de Evaristo Cárdenas, que aparecera sentado a seu lado, acompanhado pela jovem mulher. Ao olhar para ele, para aqueles olhos protegidos por óculos escuros, juraria que o antigo poeta sorrira na sua direcção e baixara a cabeça uns milímetros, apenas o suficiente para deixar no ar a dúvida sobre se tratara ou não de um cumprimento. Inadvertidamente, sorriu para o argentino – mas a mulher olhou-o muito séria, a cabeça direita, muito direita. Daí a pouco o par levantou-se e os empregados curvaram-se à sua passagem, deferentes. Um deles abriu-lhes a porta. E, por mais que quisesse desmentir aquilo que os seus olhos viram, juraria que tinha visto, naquele momento preciso, o corpo esguio de Lucas Corso atravessando a praça e perseguindo Evaristo Cárdenas e a mulher. Deixou uma nota de dez pesos sobre a mesa e saiu a correr atrás do espanhol, se era ele. Do hotel, ligou para Madrid, pois o número de telefone do mercenário estava na sua agenda. Ninguém respondeu do outro lado do Atlântico. E teve então a certeza de que Lucas Corso estava em Buenos Aires, o que significa que havia qualquer coisa a esperar dessa presença, quanto mais não fosse o facto de estar correcta a sua intuição sobre o segredo do Quijote.

Essa sensação aumentou quando, dois dias depois, perto de Bariloche, onde foi em passeio aproveitando uma promoção turística de Outono, confirmou que as coincidências não eram apenas factos isolados. Ao seu lado, no avião que saiu meio vazio de Ezeiza, sentou-se uma rapariga ainda jovem. Reparou nela e nas suas pernas (mal tapadas por uma saia de veludo até aos joelhos) porque ela se sentou e abriu um livro, Une Anée a Dieppe. Ele não conhecia, mas Dieppe levou-o a Dumas, onde o escritor morrera, e Dumas levou-o a Arturo Pérez-Reverte. No dia seguinte, no barco que atravessava o lago Nahuel Huapi, na direcção da fronteira com o Chile, a mesma rapariga percorria o convés propondo aos turistas tirar-lhes uma fotografia em troca de quinze pesos – quis perguntar-lhe se não era ela que estava no avião no dia anterior, mas só voltou a vê-la no fim da viagem. Dirigiu-se para lá, atravessando as cabines de passageiros. Nessa altura o barco atracou – ela estava sentada à popa e lia a Câmara Clara, de Roland Barthes, absorta e iluminada pela luz do sol, recortada no paredão azulado das cordilheiras. Não teve coragem de interromper aquele quadro e regressou ao seu lugar, no convés superior. Não quis acreditar, mas exactamente na sua cadeira estava um exemplar do Quijote, a versão popular de Alarcón Bonito e Machin Azparren, idêntica à que ele próprio comprara, havia muitos anos, numa loja de Madrid que vendia livros a peso.

“Cada dia descubro en vos valores que me obligan e fuerzan a que en mas os estime”, ouviu atrás de si. Lucas Corso sorria, fumando um cigarro, a mochila pendurada no ombro esquerdo, como de costume.

“A frase não está completa, Lucas.”

“Y así, si quisiérades sacarme desta deuda sin ejecutarme en la honra, lo podreis muy bien hacer.”

“Assim está bem.”

“Completíssima. Aqui acaba a traição de Luscinda, que regressa aos braços de Cardenio enquanto Don Fernando casa com Doroteia.”

“Casa mesmo?”

“Só Cervantes sabia a certeza. E escreveu-o, mas há apenas uma sugestão. Como te interessaste por este fragmento, português?”

“Os portugueses têm a tentação do detalhe.”

“Não é verdade. Os portugueses têm a tentação do romance barato, não do detalhe. O Quijote é um romance que lhes escapa.”

“Ele escreveu mesmo esse fragmento?”

“O que ambos julgamos que falta?”

“Aquele que buscamos.”

“Só Alicia Goye sabe a verdade.”

“Para quem trabalhas?”

“Para um argentino que não conheço verdadeiramente.”

“Evaristo Cárdenas? Vi-te atrás dele.”

“O cego que quer o manuscrito perdido. Há sempre um cego em Buenos Aires, um cego que ouve tangos, um tango que se escreve em silêncio. Evaristo diz que esse manuscrito lhe pertencia e que em 1964 Tiberi lho roubou. Desde essa altura nunca mais escreveu. Como se lhe roubasse a luz. Evaristo Cárdenas de Saavedra.”

“Como é que Cárdenas o conseguiu?”

“Como se consegue tudo. Com persistência, com sorte e com trabalho. O manuscrito não é, evidentemente, de Cervantes. Seria impossível. Mas é uma imitação perfeita da letra de Cervantes e é puro Quijote.”

“O que diz o manuscrito?”

“Conta a verdadeira história que está por detrás dessa traição de Luscinda e da quase perfeição de Doroteia.”

“E essa rapariga, aí, essa fotógrafa, quem é?”

Lucas Corso olhou para a ponta de cigarro, quase no fim, e esmagou-o no cinzeiro do convés. Depois voltou-se para ele e sorriu; o barco iniciava a manobra de retorno, afastando-se da cordilheira e da fronteira do Chile.

“É a amante de Alicia Goye. A namorada, como vocês dizem, os portugueses. E sobrinha neta de Evaristo Cárdenas. Tu és o último elo da cadeia que prende o velho à realidade e à literatura, ao mesmo tempo, porque imaginaste que existiria mais qualquer coisa por detrás do episódio. Há cinquenta anos, mais ou menos, em plena juventude ainda, Evaristo Cárdenas chegou a essa conclusão e esperou que alguém o acompanhasse. Cinquenta anos depois dele, alguém leu Cervantes como ele o leu.”

“E o manuscrito?”

“Oh, o manuscrito está lá, misturado com os papéis de Rodríguez Tiberi. Ninguém se interessa por ele, nem Cárdenas, nem Alicia, nem a sobrinha de Cárdenas. Não vale nada.”

“Não vale nada?”

“Nada. Foi Cárdenas que o escreveu durante dois anos. São dez páginas em que Cervantes conta a verdadeira história, pedindo desculpa aos seus leitores por tê-los enganado. Cárdenas só está interessado em ti. Ele queria saber como chegaste a essa conclusão, português.”

E ficou a sorrir, parado no meio do convés do barco. E, apontando para as águas negras e azuis do lago, perguntou:

“Sabes o que significa Nahuel Huapi? A Ilha do Tigre. Borges gostava muito de tigres, não gostava?”

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