terça-feira, fevereiro 01, 2005

A Amazónia árabe

O avô de Milton Hatoum partiu do Líbano, de Beirute, e um ano depois chegava a Manaus. Estávamos no princípio do século XX. Em Relatos de Um Certo Oriente e em Dois Irmãos, publicados em Portugal pela Cotovia, Milton Hatoum assume essa tradição que continua a surpreender aqueles que pensam que o Brasil começa no Rio de Janeiro e acaba em Salvador.



ENTREVISTA DE FRANCISCO JOSÉ VIEGAS


Em qualquer um dos dois romances, Relatos de um Certo Oriente e Dois Irmãos, escreve histórias sobre a recordação. É tão importante assim para si essa recordação da infância árabe, libanesa?
Eu acho que a literatura é movida pela memória. No primeiro romance, Relatos de Um Certo Oriente, há uma frase de um personagem que diz «a vida começa verdadeiramente com a memória» e, bom, eu sou habitado pela memória, nós somos habitados pela memória. «Memory you have the key», como disse o poema de Auden. A memória é quase um romance à mesa da imaginação, porque a memória também trai, ela não diz exactamente aquilo que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. E o romance é uma história do como «se» tivesse acontecido, alguma coisa que, enfim, aconteceu na imaginação, na nossa invenção.

O leitor pode procurar alguma autobiografia nos seus romances?
Pode. Mas nunca vai achar uma autobiografia, porque a autobiografia também é uma invenção. A autobiografia em si já é o registo de alguma coisa passada, e o registo daquilo que passou é, sem dúvida, um espaço da invenção. Ele permite, o tempo passado, como também exige, um voo da imaginação. Então, mesmo aqueles relatos mais autobiográficos, são permeados de mentiras. O mais importante é que essa mentira tenha um teor de verdade. Que seja uma mentira convincente, que faça parte, vamos dizer, da experiência do narrador. Não digo do autor, mas da experiência do narrador. Os meus romances, na verdade, não são autobiográficos, têm traços da cultura árabe, do imigrante libanês na Amazónia, do imigrante português também, porque a Amazónia é essencialmente portuguesa…

Provavelmente é das regiões que manteve durante mais tempo a presença portuguesa…
É a que manteve durante muito tempo um vocabulário português e indígena ao mesmo tempo. Nós não fomos influenciados por outras imigrações, como a italiana, a alemã, enfim, espanhola, embora haja também imigrantes desses países na Amazónia. O predominante é o português, quer dizer, os vizinhos portugueses da minha infância, que estão no Relato de Um Certo Oriente, onde eu falo das casas que frequentava, da comida portuguesa, do sotaque português, das lembranças de Portugal, do Minho, dos minhotos…

O sector mais imigrante do Brasil nessa zona era minhoto, de facto.
De Póvoa do Varzim havia muitos. Da Serra da Estrela também… Não sei porquê... Eram vizinhos amigos da minha família e nós frequentávamos a casa deles e vice-versa…

O Milton hoje vive em S. Paulo, em Higienópolis. Um bairro tranquilo, seguro, bonito. Com árvores e tudo. Mas há pouco dizia-me que sentia falta do Amazonas.
Aqui em S. Paulo não há mais horizonte. Você tem que erguer a cabeça para enxergar o céu. É uma cidade monumental, ela tem um lado escultural e feio também, porque não é uma cidade bonita. É uma cidade gigantesca da qual a natureza foi banida, ao passo que quem vem da Amazónia, ou de uma região onde a natureza é muito forte, muito presente, S. Paulo é uma cidade muito dura. Mas eu morei aqui na década de setenta. Morei dez anos em S. Paulo.

E durante esses anos, que fez em S. Paulo, estudava?
Eu estudei Arquitectura. Sou arquitecto. Exerci muito pouco minha profissão de arquitecto. Eu abandonei a arquitectura pela palavra…

Foi uma boa troca?
Acho que foi porque eu não gostava de projectar, não tinha a paixão pelo projecto como eu tenho a vontade e o desejo de escrever. E depois morei em vários lugares da Europa. Em Madrid, em Barcelona, morei em Paris vários anos…

Como foi parar à Europa?
Ganhei uma bolsa de um instituto de Madrid, o Instituto Ibero-Americano. E fui passar seis meses a Madrid, depois fui a Barcelona e trabalhei lá dando aulas de português, traduzindo um pouco para o espanhol. Depois fui para Paris. E de Paris eu voltei para Manaus. Depois de quinze anos de ausência. Mas foi na Europa onde eu me tornei escritor porque…

… porque teve saudades de Manaus?
Comecei a sentir falta do vocabulário amazónico, das paisagens da infância, daquilo que é essencial para um escritor. Porque eu acho que um escritor, todo mundo ficcional dele, todo o universo ficcional, está presente na sua infância, e na sua juventude. É como se ele vivesse vinte e cinco, trinta anos, e depois passasse o resto da vida escrevendo sobre essa primeira etapa da vida. Então eu sentia muita falta dessa vida que não existe mais, porque toda a infância é um paraíso perdido para sempre. Como dizia Proust. E já começava a sonhar em francês, eu achei isso, muito perigoso. Porque não conseguiria, jamais, escrever em francês.

Achou que estava a perder alguma identidade?
Não exactamente isso, porque a nossa identidade ela é tão difusa, pertence a tantas culturas, pelo menos a minha, eu que sou filho de imigrantes, que na infância convivi com vários idiomas, com o árabe, com o francês falado pela minha avó e, sobretudo, com o português…

Para o leitor não brasileiro -- provavelmente também para o leitor brasileiro --, o universo de que fala é completamente desconhecido, sobretudo do ponto de vista da literatura brasileira? Durante muito tempo, em Portugal, a literatura brasileira era dominada pelo chamado «paradigma baiano». Há uma certa transferência, depois para o eixo Rio-S.Paulo, mas tudo o que saía desse universo não era brasileiro. Viveu essa experiência de falar de uma realidade de que as pessoas ignoravam?
Quando eu publiquei o meu primeiro romance, foi uma surpresa. Foi uma surpresa para a crítica e para o leitor. Porque os críticos se perguntaram, como é que da Amazónia, de onde só se esperam histórias sobre índios e seringueiros e aventura da floresta, surge um romance sobre a emigração, sobre a memória, um drama familiar…

Um drama familiar, e a memória, mas desse ponto de vista da cultura árabe e libanesa…
Sim, mas acontece que nos meus romances, os imigrantes já são adaptados ao Brasil. O drama deles não é essa volta às origens…

Mas os seus romances são sobre a família. Esse universo reproduz, provavelmente, muito da cultura árabe.
Sim, muito da cultura árabe misturada com a cultura brasileira da Amazónia. Porque aí eu acho que isso é o tema de muitos ensaios sobre o meu trabalho. Essa cultura híbrida, essa literatura híbrida, que é a literatura de um país também híbrido.

1 Comentários:

Blogger herbert farias disse...

Admiravel toda essa iniciativa de abrir panoramas, escancarar a porta que impede a vista de um Brasil pleno. Que bom é poder ler um Brasil autêntico, nao a caricatura produzida pelos bairros dominantes.
Parabéns, e feliz marcha!

8:43 da tarde  

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