sábado, novembro 05, 2005

Brasil recolonizado / Miguel Sanches Neto / «Carta Capital»

BRASIL RECOLONIZADO

IDÉIAS Portugal impõe ao País o consumo de escritores às vezes convencionais e nem sempre muito visíveis na terra natal

POR MIGUEL SANCHES NETO

Na década de 80, José J. Veiga, apresentando o livro Memorial do Convento (Bertrand), de José Saramago, dizia que era preciso descobrir Portugal, percorrendo o caminho inverso de Pedro Álvares. Para o grande contista goiano, devíamos fazer deste romancista uma possessão ultramarina. E foi exatamente isso que acabou ocorrendo. Muito do renome do lusitano deve ser creditado à recepção que ele teve no Brasil. Desde Fernando Pessoa, descoberto pelos brasileiros nos anos 40, quando se deu o retorno da lírica convencional, nenhum escritor da Terrinha tinha conseguido infiltrar-se de tal forma na corrente sanguínea da produção brasileira. Saramago propôs uma irmandade política entre Portugal e Brasil em seu romance Jangada de Pedra (Cia. das Letras), cuja metáfora é explícita: sua pátria desprende-se do continente europeu e vem aportar na costa brasileira. Era a defesa de uma adesão lusitana aos problemas sociais da América Latina, dentro da visão comunista do autor que se queria longe do capitalismo da Europa rica, que se estabelece definitivamente com a implantação da moeda única - o euro.

Foi a unificação simbólica dos dois paises que projetou Saramago internacionalmente, rendendo-lhe o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, o mesmo negado a Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Meio Neto.
Mas a força portuguesa que chegou até nós não foi a da luta pelos excluídos sociais. Portugal, subitamente enriquecido pelo capital estrangeiro, passou a ser uma nova potência colonizadora e suas empresas se estabeleceram aqui, modificando o perfil de alguns setores de nossa economia, como o de supermercados e de telefonia, áreas em que os irmãos lusitanos são muito fortes, a ponto de interferirem decisivamente em nossa vida política.
Como todo poder econômico impõe sempre sua cultura, essa presença de Portugal trouxe para o País uma enchente de escritores. Estamos vivendo hoje uma transferência da Corte Literária Portuguesa. Para rivalizar com Saramago, apareceu seu opositor mais destacado - António Lobo Antunes, lido por nós como uma espécie de vanguarda barroca por livros como O Esplendor de Portugal ou Fado Alexandrino. Passamos a cultuar o poeta Herberto Helder, tido como novidade por sua imaginação surrealista. E os portugueses mais importantes foram ocupando lugar nos catálogos de nossas editoras. Helder Macedo teve seus romances editados pela Record. Sophia de Mello Breyner Andresen ganhou uma antologia de poemas pela Companhia das Letras. E os escritores portugueses passaram a ser notícia.
A fase em que nos encontramos hoje é a da onipresença desses autores, até daqueles que rião são muito visíveis em seu habitat. Como está na moda a literatura feita por mulheres, o grande fenômeno nesta área foi Inês Pedrosa, principalmente pelo romance Fazes-me falta (Planeta) - um título difícil para ouvidos brasileiros. Ela vem sendo consumida com devoção, apesar de seu estilo derramado, avesso à tradição de amaciamento da língua literária e da síntese empreendida no Brasil a partir do Modernismo. Menos palavroso, mas também convencional, Miguel de Sonsa Tavares, autor de Equador (Nova Fronteira), tem ocupado um lugar de destaque no meio editorial. E a sensação do momento é o jovem poeta e ficcionista Gonçalo M. Tavares (O Senhor Brecht Casa da Palavra), apontado como grande revelação por seus livros igualmente abundantes em palavras e bossas juvenis. Ele é o mais prolífico autor de uma geração que está na casa dos 30.

Um detalhe que não pode ser esquecido é que alguns desses livros vêm com o patrocínio do Ministério da Cultura de Portugal, que assim subsidia a exportação de autores para o Brasil, consolidando uma presença cultural onde o país já tem uma forte participação econômica e política. Estamos de uma certa forma sofrendo um processo de recolonização, o que corrige o descaso com que tratamos os portugueses no último século, mas também cria algumas distorções, pois pode nos tirar de nosso caminho.
Para o professor e tradutor espanhol Basilio Losada, a grandeza da literatura brasileira vem da origem popular de nossos escritores ou de uma sensibilidade para recuperar um universo ainda rústico por meio de uma língua em mutação. Segundo ele, a grande literatura não sairá mais da Europa, onde ocorreu uma estandardização cultural, mas dos países em que a pluralidade gera conflitos no interior da língua e na percepção da realidade.
Esta tese é corretíssima, pois as grandes obras modernas se valem de uma língua vivenciada em situações cotidianas. A afirmação de Losada pode ser vista nos maiores escritores brasileiros do século XX: de um Mário de Andrade a um recente Ferreira Gullar, todos foram sensíveis à cultura popular, às experiências pessoais no interior de classes sociais ou de espaços periféricos. A força de nossa cultura está ligada a um uso da língua e do imaginário com raizes na experiência deformadora de nossa realidade presa a tempos antagônicos.
A experiência de temporalidade no Brasil não é homogênea, e foi essa percepção que deu origem a uma arte modernista que abusou dos descompassos históricos do Pais. Ainda hoje, temos comunidades vivendo na era primitiva, na colonial, embora o mundo contemporâneo seja cibernético. O convívio com essas disparidades é que enriquece nossa produção, nascida não só da mescla de raças, mas também de tempos.
Em "Horror ao ideal e outros comentários", o poeta modernista Dante Milano defendeu a condição atípica de nossa língua: "O que é esplendor em outros idiomas, no nosso é artifício ridículo. A índole de nossa língua é a simplicidade, a pureza, a frescura, e uma pobreza humilde e casta [...]. Língua sublimemente popular, que não se adapta à fraseologia culta e artificial. A nossa língua tem raízes no chão e nos chama à realidade". Foi esta realidade maior do que as instituições padronizadoras que deu grandeza universal aos grandes nomes de nossa literatura moderna, que se afastaram de um discurso lusitano pomposo e um tanto oco. Nós investimos na expressividade do idioma aberto à contribuição milionária de todos os erros (Oswald de Andrade), enquanto em Portugal a língua se fixou nas convenções cultas. O autor que mais mexeu na língua, testando sua elasticidade expressional, Guimarães Rosa, explicava para o crítico alemão Günter Lorenz, em 1965: "Nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o Português falado na Europa. E tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturado [...]. Como brasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta do que os portugueses, obrigados a pensar utilizando uma língua saturada". Logo, contra o lugar-comum, o idioma é justamente o que nos separa de Portugal, pois, se a matriz é a mesma, a índole é totalmente diversa.
Em meados dos anos 90, em uma Bienal do Livro de São Paulo, o crítico Eduardo Lourenço reclamava da influência negativa das telenovelas brasileiras nos hábitos lingüísticos lusos. O que se vive agora, no meio cultural brasileiro, é um processo inverso, são os autores portugueses influenciando a literatura brasileira, afastando-nos de um caminho criativo, próximo da língua falada, para colocar em destaque um código saturado.
Quem escreve este artigo organizou sua biblioteca em dois grandes setores - autores de língua portuguesa e autores estrangeiros. Para ele, os portugueses, moçambicanos, angolanos e outros falantes da língua não são estrangeiros, mas cada um guarda individualidades. O papel de cada país é não se render a nenhuma força colonizadora. O moçambicano Albino Magaia tem um poema antológico: "Descolonizamos o Land Rover", destacando o uso solidário do veículo que representa a ideologia capitalista.
Foi exatamente isso que a tradição moderna de nossa literatura fez: descolonizamos o português. E esse movimento deu nossa identidade, avessa, como afirmou Dante Milano, à fraseologia culta e artificial, marca de grande parte dos novos escritores portugueses.

sexta-feira, julho 29, 2005

O Manuscrito de Buenos Aires

Aos sábados de manhã, havia esse ruído permanente que o traía: uma espécie de ventania vinda do canal, os táxis que avançavam até às portas de San Telmo, cafés abertos desde muito cedo, os jornais abertos sobre a mesa do Café de la Plaza – e os alfarrabistas que, na verdade, detestava. Era o seu sexto sábado em Buenos Aires desde que decidira levar até ao fim a pesquisa e, como acontecia todas as vezes, encontrava aquele cego passeando ao longo da Calle Defensa, misturando-se com os turistas, guiado por uma jovem demasiado séria, de cabelos compridos e vestida como há muitos anos devia estar vestida uma mulher mais velha, a quem ele segurava o braço como se fosse ele a dirigir-lhe os passos, e não o contrário, ele a empurrá-la nesta ou naquela direcção e não o contrário, entre as pequenas orquestras que tocavam tangos no meio da rua – um violoncelo, um piano, dois violinos, um bandoneón –, escapando aos vendedores de antiguidades. Encontrara-os sempre àquela hora. Por uma vez aconteceu que ambos, o velho e a jovem, se sentaram a uma mesa do café da Plaza Dorrego, e ficaram por ali durante uma hora: ela, segurando-lhe a mão por baixo da mesa; ele, como se olhasse ou pudesse olhar as pessoas que entravam no café, movendo a cabeça quando alguém arrastava uma cadeira ou quando um empregado passava mais perto, transportando a sua bandeja com cervejas. Tinham-lhe dito que era um poeta. Melhor, que fora um poeta – não publicava um poema há mais de trinta anos embora fosse cumprimentado pelos outros poetas e o seu nome figurasse em dois dicionários enciclopédicos sobre a Argentina do século XX. Por mera curiosidade, um dia entrara numa livraria da Recoleta e abrira o terceiro volume, onde na letra C constava o nome de Evaristo Cárdenas, nascido a 24 de Agosto de 1927 em Buenos Aires, autor de três livros de poemas, o último deles Los Tangos Porteños, fora publicado em 1964. Tomara nota dos títulos no seu caderno e teria de arrancar a folha – um homem meticuloso como ele não gostava de ver o nome de Evaristo Cárdenas, um velho romântico que escrevera sobre os tangos de Buenos Aires e a heráldica espanhola, no meio das mais recentes anotações sobre o assunto que dominara a sua vida nos últimos dois anos. Um homem meticuloso como ele. Um intelectual europeu, professor em licença sabática, casado e medianamente respeitado como é possível ser respeitado um professor português de uma universidade de província. Um homem que decide aproveitar a sua licença sabática para viajar até Buenos Aires e dedicar-se a esclarecer uma das suas obsessões principais. O encontro com essa obsessão, de resto, fora um acaso, tão acaso como o encontro sem sentido nenhum com Evaristo Cárdenas – mas estava decidido a seguir até ao fim e enfrentar o ridículo daquela esperança que já nem sequer era literária e que se aproximara de uma mania que aos outros poderia parecer cómica.

Cervantes não era uma personagem cómica. Ele pensava assim. E fora Cervantes que o trouxera a Buenos Aires. O capítulo XXIV do livro primeiro do Quijote lançou a primeira das suas suspeitas porque os amores e as histórias cruzadas de Cardenio, Luscinda, Doroteia e Dom Fernando faziam supor que Cervantes, o cómico, e não Cervantes, o eterno, tinha brincado com a própria literatura. Essa foi a sua primeira impressão, e havia um enigma evidente nesse episódio, que era um rodopio sobre a liberalidade com que o próprio Miguel Cervantes de Saavedra tinha tratado em romance das coisas reais do seu tempo. Anagramas. Ele aprendera a desconfiar dos anagramas. Nomes cifrados. Existiam às dezenas no Quijote. Existiam às dezenas em Cervantes. Porque Cervantes e o Quijote eram familiares – ambos confundiam o leitor, misturando e realidade com a ficção, o que seria normal, e o assunto não mereceria mais do que duas páginas cheias de lugares-comuns acerca da utilidade material da literatura e sobre os processos de composição do romance. Vira muitos professores, investigadores, assistentes da universidade e simples curiosos, dançar sobre andaimes acerca da contiguidade entre realidade e ficção. Sobre todos os assuntos, esse era o mais desinteressante no caso da ficção – e o mais enigmático no caso da realidade. Dedicara anos de estudo a esse episódio e sempre imaginara Cervantes ludibriando a realidade, vingando-se – como todos os grandes escritores – de uma parte da sua vida. O que o preocupava não era o facto de a história de Dom Fernando ter sido real alguma vez, mas a existência daquelas palavras de Sancho. Ele recordava-as: “Digo de verdad que es vuestra merced el mesmo diablo, y que no hay cosa que no se sepa.” Não há coisa que não se saiba, de facto – Sancho alertaria Don Quijote para os perigos de denunciar Cardenio como o cordobês Cardenas, mortificado pela traição de Lucinda com Dom Fernando, antes de se refugiar na Serra Morena. E que Dom Fernando seria um Pedro Girón enamorado de Maria de Torres nessa Andaluzia de 1580. No final tudo se compõe, e Dom Fernando casa-se com Dorotea enquanto Cardenio, aliás Cárdenas, vê regressar Lucinda aos seus braços. O episódio é conhecido e vulgar. A meditação sobre a moral da sua história é ainda mais desinteressante. Só que.

Esse “só que” havia de transformar-se num gigantesco “no entanto” durante uma bela tarde de Outono, quando a universidade se preparava para reiniciar as aulas depois de uma interrupção de Novembro. Uma luz amarelada e tépida tomara conta do seu gabinete, rodeado de livros, pilhas de papéis, caixas com anotações que tinham sobrado do seu último artigo sobre Sterne, correspondência que nunca tinha aberto, revistas académicas cujos assuntos raramente o interessavam. Sterne tinha escrito sobre Cervantes; era uma das ligações inesperadas – mas também eram as de Machado, Twain, Conrad, Dostoievski ou Thomas Mann. Sterne, no Tristram Shandy (oh, sim, Livro IX, capítulo 21) tem uma passagem onde menciona o seu idolatrado Cervantes. É curta e sempre se perguntara porquê tão curta. Mas o Tristram Shandy tinha capítulos colossais, capítulos curtos, capítulos enigmáticos e, também, capítulos que não existiam. Machado de Assis e Almeida Garrett também. A ideia de existirem capítulos que não existem levou-o mais longe e, sobretudo, muito mais longe do que poderia imaginar. Foi nessa tarde de Outono que, ao decidir dar uma ordem a esse amontoado de papéis, e começando pelas revistas académicas, entre as quais muitas que escondeu cuidadosamente numa caixa de cartão que devia ser enviada para a reciclagem – foi então que abriu aquele exemplar de uma revista de Buenos Aires e onde descobriu o artigo sobre “La literatura que no existe”. A tese do autor, um até aí ignorado Rodríguez Tiberi, mencionava justamente Cervantes e começava com uma citação de Jorge Luis Borges, uns versos de El otro, el mismo, o seu livro de poemas de 1964. O que lhe chamou a atenção foi esse parágrafo fatal, que copiou, traduziu e acabou por afixar no quadro de cortiça que decorava uma das paredes do gabinete: “É possível que muitos autores tenham, como Cervantes no Quijote, limitado a sua obra ao que se podia conhecer na sua edição. Não ao que foi de facto escrito. Fragmentos desaparecidos de obras invulgares e definitivas poderiam ser destruídas se fossem conhecidos esses manuscritos nunca utilizados – a isso foram os autores obrigados pelos seus editores, pelo poder do Estado, da Igreja ou da sua consciência ou conveniência. O que sabemos do Quijote ou das suas primeiras edições permite apenas suposições. Mas a história literária ocidental teria sido diferente.” Esta passagem interessou-o durante algumas semanas, tanto mais que não se recordava da existência de excessivas polémicas sobre o original de Cervantes. Mas só isso. Só uns meses mais tarde, num encontro sobre edição de manuscritos do século XVIII, em Salamanca, pôde conversar com Lucas Corso sobre Rodríguez Tiberi e sobre eventuais rumores acerca de Cervantes ou dos seus manuscritos. Corso era conhecido como um caçador de edições raras e, muito frequentemente, as universidades e as bibliotecas – embora desconfiassem dele e temessem ver-se associados ao espanhol – recorriam aos seus serviços, que eram bem pagos e geralmente pisavam o risco da ilegalidade. Esse conhecimento datava de há alguns anos, quando Lucas Corso rondou Lisboa no meio de uma investigação sobre um manuscrito de Dumas.

“Tiberi é um homem misterioso, ensina na universidade de Buenos Aires mas, como todo o argentino, pode ser encontrado em qualquer lado, em Santiago como em Paris, em Reikjavík como em Salamanca”, dissera Lucas Corso, à noite, no bar do Hotel Byblos, bebendo um derradeiro Bombay apenas com gelo. “Não confies demasiado nele. Nunca fiz negócios com Tiberi, mas se há alguma edição rara em Buenos Aires, ele ouviu falar dela.”

Só quando saíram para o Passeo Carmelitas, sob aquela tepidez de Salamanca no final da Primavera, onde há sempre um ruído de fundo, ele lhe perguntou se sabia de alguma ligação de Tiberi a Cervantes.

“Não”, disse o espanhol enquanto se desembaraçava de um cigarro que acendera apenas um pouco antes. “Não sei.”

Passaram-se alguns meses antes de começar o seu período sabático, logo depois de Fevereiro. Nesse período não teve notícias de Lucas Corso – e estas chegaram na segunda semana de Março através de um email lacónico e curto onde lhe dizia que Rodríguez Tiberi tinha morrido e que o seu espólio – manuscritos, cartas, edições raras – estava à venda em Buenos Aires. Não havia catálogo algum mas supunha-se que seria rico, curioso e, ao que se sabia, disputado.

Na vida inteira, no destino de um homem – que muitas vezes é apenas absurdo –, há decisões dramáticas e sérias. E há outras que não merecem explicação. Uma delas foi o pedido de uma bolsa de curta duração, feito há meses, e que lhe permitiria passar algumas semanas em Buenos Aires, desde que encontrasse um pequeno hotel num dos bairros antigos. A justificação seria, naturalmente, Jorge Luis Borges – e, claro, a sua relação com Cervantes. Por razões obscuras, o seu pedido foi aceite e partiu em finais de Abril para Buenos Aires. Divorciado, os filhos na universidade, a vida sentimental reduzida a encontros de ocasião com mulheres bibliófilas ou moderadamente assexuadas, pôde partir sem essa sensação de deixar atrás de si uma ausência muito notada. Tinha um visto de seis meses, que não iria utilizar, duas malas com roupa e uma mochila com o computador portátil. Buenos Aires entrava no Outono.

Ao fim de uma semana, alojado nos limites de San Telmo, conhecendo já a Biblioteca Nacional, as livrarias de Belgrano e os restaurantes baratos do bairro, pôde marcar a primeira entrevista com Alicia Goye, uma das curadoras encarregue pela família de Rodríguez Tiberi de se desfazer do espólio do velho professor e bibliófilo. Ela pediu desculpa por não poder recebê-lo no escritório, porque estavam a fazer algumas reformas, mas sugeriu o Café Britânico, ao fundo do Parque Lezama, exactamente no encontro entre as calles Defensa e Brasil. Era uma mulher de cabelo curto e ruivo, vestida como ele esperava que acontecesse com uma bibliotecária de trinta e cinco anos – acrescentando ainda uma mantilha negra e uns olhos castanhos, profundos, silenciosos.

“Digo de verdad que es vuestra merced el mismo diablo, y que no hay cosa que no se sepa.”

Foi o que ele disse. Ela sorriu.

“Sancho Panza em Buenos Aires. Você é Sancho Panza?”

Ele estranhou que Alicia Goye reconhecesse a passagem, ainda por cima no seu castelhano que nunca fora propriamente famoso. Mas estranhou ainda mais que ele tivesse dito aquela frase depois de lhe apertar a mão, ainda de pé, olhando para aqueles olhos profundos, silenciosos. Ela riu, mais do que sorriu. E ele sentou-se, concentrando-se – evitando os olhos daquela mulher cuja voz lhe parecia tão fantástica como o próprio facto de ele estar em Buenos Aires.

“Disse-me que está a estudar Borges.”

“É um pretexto.”

“Todos os pretextos são bons quando se trata de vir a Buenos Aires. Borges e Sábato, Ernesto Sábato. Eles não se davam muito bem, mas foi neste café, segundo se diz, que Sábato escreveu um dos seus romances. Isso incomoda-o?”

“Não. Mas o meu verdadeiro interesse é o Quijote.”

“Para isso terá de encontrar Pierre Ménard. Borges atribuiu-lhe a verdadeira autoria do Quijote. Não vem a este café.”

“Sim, mas sei que o professor Tiberi tinha muito interesse em Cervantes. E no Quijote, naturalmente. Digamos que estou muito interessado em saber se existe algum material sobre o assunto no espólio do professor Tiberi.”

“Ah, o espólio do professor Tiberi, como lhe chama, é ainda um volume disforme de papéis e de livros. Daqui a uma semana será um amontoado de caixas. E só daqui a um ano será um catálogo ordenado que valha a pena consultar.”

“Até agora não encontrou nenhum referência a Cervantes ou ao Quijote.”

“Com as devidas distâncias, a biblioteca do professor Tiberi é uma espécie de biblioteca de Jorge de Burgos.”

“Falta-lhe o Jorge de Burgos.”

“Há um Jorge de Burgos em cada um de nós”, riu ela. “O livro de Aristóteles não está lá, descanse. Estaria guardado no cofre de um banco. Ou desfeito em cinzas.”

“O que eu procuro pode estar guardado no cofre de um banco. O Quijote é um assunto demasiado sério.”

Ela também ficou séria e afastou a chávena do café, apoiando os cotovelos na mesa:

“O senhor é o terceiro interessado na edição do Quijote do professor Tiberi”, ela muito seca, aqueles olhos profundos, uma madeixa de cabelo caindo sobre a testa.

“Quem são os outros?”

“Não posso dizer-lhe. Estaria a violar um segredo, a ser desleal para com os outros concorrentes e a menosprezar a minha própria capacidade de fazer negócio. Disso depende a minha vida, compreende. Três concorrentes. É demasiado, neste momento.”

“Eu disse-lhe Cervantes de cor, citei-lhe o Quijote. Essa passagem. Não mereço que me diga mais alguma coisa?”

“Nem imagina o que fizeram os outros para merecer mais do que um encontro no Café Británico. Hoje em dia faz-se muito pela literatura. Tenho de me contentar com a minha posição de intermediária. A família do professor Tiberi não entende nada de livros. Se estivessem diante de um manuscrito de Cervantes deitavam-no no lixo. Estava velho e não se entendia nada.”

“Por que falou num manuscrito de Cervantes?”

“Eu falei? Buenos Aires é uma cidade fantástica, mesmo para nós, porteños. Faz-nos dizer coisas sem sentido. Ou talvez fosse porque me citou uma fala do capítulo XXV. Cardenio está desesperado e odeia Fernando e Luscinda. Sancho está mais tranquilo. Gostei de conhecê-lo. Telefone-me daqui a duas semanas, quando tiver avançado na sua investigação sobre Borges.”

E saiu, arrastando consigo aquele perfume, cumprimentada pelos empregados do café, ajeitando a mantilha negra que contrastava perfeitamente com o tom ruivo do seu cabelo. Na rua, enquanto ouvia a música de uma orquestra de rua que se despedia da tarde de Buenos Aires, mergulhando no crepúsculo, pareceu-lhe ver um rosto conhecido – por instantes julgou que fosse Lucas Corso, o que atribuiu a uma influência literária traiçoeira, uma vez que, no hotel, começara a ler a edição em espanhol de O Clube Dumas, de Pérez Reverte.

Voltou a vê-la duas semanas depois, exactamente no Café Británico, exactamente à mesma hora, mas já não tinha importância. Durante uma semana tentou, em vão, reconstituir os acontecimentos dessa parte do Quijote. Uma tarde, quando se sentou a uma mesa do café da Plaza Dorrego, lendo jornais e bebendo cerveja, foi surpreendido pela presença de Evaristo Cárdenas, que aparecera sentado a seu lado, acompanhado pela jovem mulher. Ao olhar para ele, para aqueles olhos protegidos por óculos escuros, juraria que o antigo poeta sorrira na sua direcção e baixara a cabeça uns milímetros, apenas o suficiente para deixar no ar a dúvida sobre se tratara ou não de um cumprimento. Inadvertidamente, sorriu para o argentino – mas a mulher olhou-o muito séria, a cabeça direita, muito direita. Daí a pouco o par levantou-se e os empregados curvaram-se à sua passagem, deferentes. Um deles abriu-lhes a porta. E, por mais que quisesse desmentir aquilo que os seus olhos viram, juraria que tinha visto, naquele momento preciso, o corpo esguio de Lucas Corso atravessando a praça e perseguindo Evaristo Cárdenas e a mulher. Deixou uma nota de dez pesos sobre a mesa e saiu a correr atrás do espanhol, se era ele. Do hotel, ligou para Madrid, pois o número de telefone do mercenário estava na sua agenda. Ninguém respondeu do outro lado do Atlântico. E teve então a certeza de que Lucas Corso estava em Buenos Aires, o que significa que havia qualquer coisa a esperar dessa presença, quanto mais não fosse o facto de estar correcta a sua intuição sobre o segredo do Quijote.

Essa sensação aumentou quando, dois dias depois, perto de Bariloche, onde foi em passeio aproveitando uma promoção turística de Outono, confirmou que as coincidências não eram apenas factos isolados. Ao seu lado, no avião que saiu meio vazio de Ezeiza, sentou-se uma rapariga ainda jovem. Reparou nela e nas suas pernas (mal tapadas por uma saia de veludo até aos joelhos) porque ela se sentou e abriu um livro, Une Anée a Dieppe. Ele não conhecia, mas Dieppe levou-o a Dumas, onde o escritor morrera, e Dumas levou-o a Arturo Pérez-Reverte. No dia seguinte, no barco que atravessava o lago Nahuel Huapi, na direcção da fronteira com o Chile, a mesma rapariga percorria o convés propondo aos turistas tirar-lhes uma fotografia em troca de quinze pesos – quis perguntar-lhe se não era ela que estava no avião no dia anterior, mas só voltou a vê-la no fim da viagem. Dirigiu-se para lá, atravessando as cabines de passageiros. Nessa altura o barco atracou – ela estava sentada à popa e lia a Câmara Clara, de Roland Barthes, absorta e iluminada pela luz do sol, recortada no paredão azulado das cordilheiras. Não teve coragem de interromper aquele quadro e regressou ao seu lugar, no convés superior. Não quis acreditar, mas exactamente na sua cadeira estava um exemplar do Quijote, a versão popular de Alarcón Bonito e Machin Azparren, idêntica à que ele próprio comprara, havia muitos anos, numa loja de Madrid que vendia livros a peso.

“Cada dia descubro en vos valores que me obligan e fuerzan a que en mas os estime”, ouviu atrás de si. Lucas Corso sorria, fumando um cigarro, a mochila pendurada no ombro esquerdo, como de costume.

“A frase não está completa, Lucas.”

“Y así, si quisiérades sacarme desta deuda sin ejecutarme en la honra, lo podreis muy bien hacer.”

“Assim está bem.”

“Completíssima. Aqui acaba a traição de Luscinda, que regressa aos braços de Cardenio enquanto Don Fernando casa com Doroteia.”

“Casa mesmo?”

“Só Cervantes sabia a certeza. E escreveu-o, mas há apenas uma sugestão. Como te interessaste por este fragmento, português?”

“Os portugueses têm a tentação do detalhe.”

“Não é verdade. Os portugueses têm a tentação do romance barato, não do detalhe. O Quijote é um romance que lhes escapa.”

“Ele escreveu mesmo esse fragmento?”

“O que ambos julgamos que falta?”

“Aquele que buscamos.”

“Só Alicia Goye sabe a verdade.”

“Para quem trabalhas?”

“Para um argentino que não conheço verdadeiramente.”

“Evaristo Cárdenas? Vi-te atrás dele.”

“O cego que quer o manuscrito perdido. Há sempre um cego em Buenos Aires, um cego que ouve tangos, um tango que se escreve em silêncio. Evaristo diz que esse manuscrito lhe pertencia e que em 1964 Tiberi lho roubou. Desde essa altura nunca mais escreveu. Como se lhe roubasse a luz. Evaristo Cárdenas de Saavedra.”

“Como é que Cárdenas o conseguiu?”

“Como se consegue tudo. Com persistência, com sorte e com trabalho. O manuscrito não é, evidentemente, de Cervantes. Seria impossível. Mas é uma imitação perfeita da letra de Cervantes e é puro Quijote.”

“O que diz o manuscrito?”

“Conta a verdadeira história que está por detrás dessa traição de Luscinda e da quase perfeição de Doroteia.”

“E essa rapariga, aí, essa fotógrafa, quem é?”

Lucas Corso olhou para a ponta de cigarro, quase no fim, e esmagou-o no cinzeiro do convés. Depois voltou-se para ele e sorriu; o barco iniciava a manobra de retorno, afastando-se da cordilheira e da fronteira do Chile.

“É a amante de Alicia Goye. A namorada, como vocês dizem, os portugueses. E sobrinha neta de Evaristo Cárdenas. Tu és o último elo da cadeia que prende o velho à realidade e à literatura, ao mesmo tempo, porque imaginaste que existiria mais qualquer coisa por detrás do episódio. Há cinquenta anos, mais ou menos, em plena juventude ainda, Evaristo Cárdenas chegou a essa conclusão e esperou que alguém o acompanhasse. Cinquenta anos depois dele, alguém leu Cervantes como ele o leu.”

“E o manuscrito?”

“Oh, o manuscrito está lá, misturado com os papéis de Rodríguez Tiberi. Ninguém se interessa por ele, nem Cárdenas, nem Alicia, nem a sobrinha de Cárdenas. Não vale nada.”

“Não vale nada?”

“Nada. Foi Cárdenas que o escreveu durante dois anos. São dez páginas em que Cervantes conta a verdadeira história, pedindo desculpa aos seus leitores por tê-los enganado. Cárdenas só está interessado em ti. Ele queria saber como chegaste a essa conclusão, português.”

E ficou a sorrir, parado no meio do convés do barco. E, apontando para as águas negras e azuis do lago, perguntou:

“Sabes o que significa Nahuel Huapi? A Ilha do Tigre. Borges gostava muito de tigres, não gostava?”

Cruz Alta, Verissimo

Para quem vem do mar, Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, inaugura o chamado território das missões. Erico Verissimo nasceu aí em 1905 e atravessou quase todo o nosso século XX. Estive duas vezes em Cruz Alta quando descia em busca da paisagem das missões – campos cruzados de rios, lagoas, neblinas, na direcção da Argentina e, mais ao norte, do Paraguai. É naquela parte do Brasil que se descobre com mais clareza que Camilo, bem como o nosso século XIX, tinham razão. Não se tratava de Brasil mas de Brasis. Quem lesse Os Sertões, de Euclydes da Cunha, imaginaria que se falava de outro país, completamente diferente e noutro hemisfério. O primeiro parágrafo de Os Sertões serve de prova: «O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.» É certo que a linguagem de Euclydes se transformou naquela exuberância que nem ele próprio esperava antes de partir para Canudos – essa mesma exuberância também deve ter assustado Vargas Llosa, quando leu o livro e escolheu o tema.

Cruz Alta não tem nada a ver com o assunto nem com a geografia. Quase todo o Rio Grande do Sul me serve para provar a existência dos Brasis diante do Brasil federativo, em planisfério, tropical e moreno. Quem leu Tabajara Ruas (o de Netto Perde a Sua Alma ou O Fascínio) ou Luiz Antônio Assis Brasil (o de O Pintor de Retratos ou A Margem Imóvel do Rio) conhece essas neblinas do pampa, a extensão dos pastos, as estradas lamacentas, casas pintadas de branco rodeadas de colinas, vinhas, aquele frio que se aprende mais na literatura do que na pele. Erico Verissimo, por isso mesmo, foi prejudicado pelo paradigma baiano. Qualquer biografia menciona a sua primeira viagem para o Rio de Janeiro e reconhece o momento, como se fosse uma genuflexão: ele encontrou-se com Jorge Amado por volta de 1934. Não foi uma genuflexão. Mas ficou como um sinal.

O Brasil de Verissimo era muito distinto daquele que nos chegava em caixotes de folclore e dialectos locais. Não tinha, inscritos no frontispício, «a cor local», o regionalismo, o apego à geometria do realismo socialista. Não que não pudesse ser realismo socialista; mas não tinha o cartaz à porta, convidando a entrar por esse lado. O livro de Verissimo mais lido em Portugal, de resto, foi Olhai os Lírios do Campo. Com aquele título (de 1938), o livro parecia inofensivo e adolescente, muito feminino; uma parte do seu sucesso vinha daí. Mais tarde, em 1966, antes da entrega do poder às patrulhas ideológicas, o próprio Verissimo (falando da importância do livro, que, graças às suas vendas, lhe permitiu viver como escritor) teve o cuidado de reconhecer que Olívia era uma personagem impossível e que Eugênio tinha remorso social a mais. A declaração não é muito importante, mas mostra até que ponto o autor estava consciente da armadilha.

Mas é a sua trilogia de O Tempo e o Vento (O Continente, O Retrato e O Arquipélago) que revela o Brasil que ainda hoje é pouco conhecido na Europa. O fresco histórico é contado a partir do Rio Grande do Sul (e fazendo a sua história) sem ceder um milímetro ao regionalismo mais consensual. A esta distância, confesso, lê-se com dificuldade: é uma saga com muito tom épico, onde Jânio Quadros e Getúlio Vargas têm direito a tratamento ficcional. Mas ainda hoje estou convencido de que, se Verissimo escrevesse em castelhano, José Lírio teria sido um percursor do «fantástico latino-americano» com a vantagem de, ao contrário dos personagens de Guimarães Rosa, não ser um pobre a falar com curso superior. Mas Verissimo tinha lido outros autores, de Katherine Mansfield, como dizem as suas biografias, até Wilde, Shaw e Aldous Huxley. E portanto levou o rótulo de «gaúcho urbano» numa altura em que todo o cânone era verdadeiramente sertanejo.

Durante anos, o Rio Grande passou por ser esse retrato de um pampa adormecido e impróprio para exportação, onde nevava e havia sotaque com espanholismo. Só verdadeiramente depois da década de setenta mostrou o seu rosto. As obras de Verissimo, que estão a ser republicadas, em série, pela Companhia das Letras, são uma oportunidade para reconstituir a história da literatura brasileira de hoje a partir de outro ponto de vista não tão folclórico. Quando hoje lemos Tabajara Ruas e Assis Brasil (nos seus retratos cruéis sobre a guerra dos Farrapos ou nas suas melancolias sulistas) compreende-se melhor o papel de Verissimo.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

O Brasil mais longínquo




O gaúcho Luiz Antônio Assis Brasil é o autor de O Pintor de Retratos, publicado pela Ambar: é a história de um retratista italiano que acaba no Rio Grande do Sul como fotógrafo dos horrores da Guerra dos Farrapos. Em breve será publicado A Margem Imóvel do Rio, entretanto finalista do prémio Jabuti, um romance sobre o Brasil mais longínquo, o do pampa e da serra gaúcha do século XIX.



ENTREVISTA DE FRANCISCO JOSÉ VIEGAS



O seu livro O Pintor de Retratos foi anunciado como a primeira parte de um díptico sobre a história do Rio Grande do Sul. A segunda parte seria A Margem Imóvel do Rio. Mas O Pintor ocupa, de qualquer modo, um lugar especial na sua bibliografia…
Sim, porque a partir de O Pintor de Retratos eu fiz algumas alterações substanciais em matéria de linguagem, de estilo, ou de forma, se quiser, ao que eu vinha praticando – uma escrita mais abundante, copiosa, neo-barroca. Ou barroca, como é a América do Sul. A partir de O Pintor de Retratos estou a trabalhar noutra dimensão…

…capítulos mais curtos…
Capítulos mais curtas, frases mais curtas, a procura do essencial…

Mas também muito mais cinematográfico…
Fundamentalmente trabalhando com cenas e pouco com resumos, para usar a linguagem académica. Fiquei extremamente feliz porque aconteceu um facto inédito na minha, digamos, carreira de vinte livros de ficção. É que as críticas foram boas, todas as críticas foram muito boas, e isso significou para mim que se trata de uma passagem importante na minha obra.

Durante muito tempo, o Brasil era, aos olhos dos europeus, um triângulo irregular cujos vértices seriam São Paulo, o Rio de Janeiro e o Nordeste. O Rio Grande do Sul ficava muito de fora…
Isso é verdade. Acho que o Rio Grande do Sul ficava fora até do próprio Brasil. O Rio Grande é uma região completamente atípica para os olhos europeus. Pela paisagem, pelo clima, pelas nossas relações culturais, que são muito mais intensas com Buenos Aires e com Montevideu, do que com o Rio de Janeiro ou São Paulo. Eu sinto-me melhor em Buenos Aires do que em Salvador. Buenos Aires e Salvador estão muito mais próximas de Porto Alegre do que a capital do meu país. Nós temos uma cultura do pampa – que invade o Uruguai e que chega ao norte da Argentina – e que significa, também, um modo de ser completamente diferente daquilo que os europeus imaginam sobre o Brasil.

Quais são as marcas dessa cultura?
Um instinto de liberdade. Essa é a marca fundamental. No Rio Grande do Sul sempre tivemos problemas com o Brasil…

Todas as revoluções brasileiras começaram aqui… Ou passaram a maior parte do tempo aqui, no Rio Grande…
Todas. Todas foram deflagradas aqui. E o Rio Grande do Sul foi independente do Brasil durante dez anos, foi a República Rio-Grandense, de 1835 a 1845. Então, esse instinto de liberdade é muito forte. E nós somos brasileiros porque desejamos, porque fizemos essa opção. Depois, nós temos a questão da língua: e nós temos uma literatura que dá sentido a essa cultura. Temos um sistema literário próprio.

Nesse sistema literário estão o Érico Verissimo, Moacyr Scliar, Luiz Antônio Assis Brasil, Tabajara Ruas?

Sim. E é um sistema auto-suficiente, o que só pode acontecer no Rio Grande do Sul. Nós temos escritores, editores, distribuidores, bibliotecas… Por uma razão muito simples: porque o Rio Grande do Sul tem a maior classe média do país, uma universidade pujante. Hoje, um escritor pode pensar em fazer uma carreira de escritor no Rio Grande do Sul independentemente do próprio Brasil.

Como se fosse noutro país?
Como se fosse noutro país, exactamente.

Mas, no Brasil, pelo menos até há pouco tempo, um autor do Rio Grande do Sul seria o representante de uma espécie de literatura regional…
Claro, claro… Mas o que se vai fazer? Não somos nós que estamos a perder. Se você pegar a lista dos livros mais vendidos na revista Veja, encontra as primeiras posições ocupadas sempre por autores gaúchos: o Luis Fernando Verissimo, a Letícia, a Lya Luft… E vivem no Rio Grande do Sul.

A literatura do Rio Grande do Sul não tem aquele «apelo turístico» que tinham os romances de Jorge Amado…
Não, nem pensar. Mas se vir bem, o ciclo nordestino acabou há muito, embora ainda existam nomes importantes, como o João Ubaldo Ribeiro, mas pouco mais. Existe aqui, em Porto Alegre, a sensação de estarmos a criar uma literatura que tem alguma coisa a dizer ao resto do país e que não se desliga da sua história.

O seu Pintor de Retratos é um desses casos…
É uma história do Rio Grande, sim.

Passa-se num cenário de grande brutalidade, como é a guerra dos Farrapos…
E faz uma pergunta: o que é ser civilizado e o que é ser bárbaro? Nós vivemos no Rio Grande do Sul uma revolução sangrenta, absolutamente brutal, em que as pessoas se degolavam no pampa, e isso põe em causa o que penso sobre a minha formação intelectual. As minhas raízes são europeias, eu vivo num espaço – que só trocaria talvez pelos Açores – existencial e cultural que é marcado por uma profunda barbárie. Essa é a tensão que habita todos os meus livros. A tensão entre civilização e barbárie.

E aparece essa fotografia espantosa, a foto de um prisioneiro a ser degolado durante a guerra dos Farrapos, que é central no seu livro…
Que é a «fotografia do destino», como ele a chama.

Depois desse livro, já publicado em Portugal, vem A Margem Imóvel do Rio. Uma viagem pelo Rio Grande…
Fascina-me a viagem, o deslocamento, as tensões que isso provoca. E o Rio Grande no século XIX era uma paisagem devastadora. Essa história nasceu do nada, de uma conversa habitual entre estancieiros, ou fazendeiros, como se diz no Brasil: todos dizem que o imperador, durante a guerra do Paraguai, esteve nas suas fazendas. O cronista do Imperador vem procurar um Francisco da Silva a quem D. Pedro teria prometido o título de Barão da Serra Grande… Vinte anos depois de ter lugar essa promessa. E vem procurar o tal Francisco da Silva. Só que acaba por encontrar vários Francisco da Silva…
A Amazónia árabe

O avô de Milton Hatoum partiu do Líbano, de Beirute, e um ano depois chegava a Manaus. Estávamos no princípio do século XX. Em Relatos de Um Certo Oriente e em Dois Irmãos, publicados em Portugal pela Cotovia, Milton Hatoum assume essa tradição que continua a surpreender aqueles que pensam que o Brasil começa no Rio de Janeiro e acaba em Salvador.



ENTREVISTA DE FRANCISCO JOSÉ VIEGAS


Em qualquer um dos dois romances, Relatos de um Certo Oriente e Dois Irmãos, escreve histórias sobre a recordação. É tão importante assim para si essa recordação da infância árabe, libanesa?
Eu acho que a literatura é movida pela memória. No primeiro romance, Relatos de Um Certo Oriente, há uma frase de um personagem que diz «a vida começa verdadeiramente com a memória» e, bom, eu sou habitado pela memória, nós somos habitados pela memória. «Memory you have the key», como disse o poema de Auden. A memória é quase um romance à mesa da imaginação, porque a memória também trai, ela não diz exactamente aquilo que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. E o romance é uma história do como «se» tivesse acontecido, alguma coisa que, enfim, aconteceu na imaginação, na nossa invenção.

O leitor pode procurar alguma autobiografia nos seus romances?
Pode. Mas nunca vai achar uma autobiografia, porque a autobiografia também é uma invenção. A autobiografia em si já é o registo de alguma coisa passada, e o registo daquilo que passou é, sem dúvida, um espaço da invenção. Ele permite, o tempo passado, como também exige, um voo da imaginação. Então, mesmo aqueles relatos mais autobiográficos, são permeados de mentiras. O mais importante é que essa mentira tenha um teor de verdade. Que seja uma mentira convincente, que faça parte, vamos dizer, da experiência do narrador. Não digo do autor, mas da experiência do narrador. Os meus romances, na verdade, não são autobiográficos, têm traços da cultura árabe, do imigrante libanês na Amazónia, do imigrante português também, porque a Amazónia é essencialmente portuguesa…

Provavelmente é das regiões que manteve durante mais tempo a presença portuguesa…
É a que manteve durante muito tempo um vocabulário português e indígena ao mesmo tempo. Nós não fomos influenciados por outras imigrações, como a italiana, a alemã, enfim, espanhola, embora haja também imigrantes desses países na Amazónia. O predominante é o português, quer dizer, os vizinhos portugueses da minha infância, que estão no Relato de Um Certo Oriente, onde eu falo das casas que frequentava, da comida portuguesa, do sotaque português, das lembranças de Portugal, do Minho, dos minhotos…

O sector mais imigrante do Brasil nessa zona era minhoto, de facto.
De Póvoa do Varzim havia muitos. Da Serra da Estrela também… Não sei porquê... Eram vizinhos amigos da minha família e nós frequentávamos a casa deles e vice-versa…

O Milton hoje vive em S. Paulo, em Higienópolis. Um bairro tranquilo, seguro, bonito. Com árvores e tudo. Mas há pouco dizia-me que sentia falta do Amazonas.
Aqui em S. Paulo não há mais horizonte. Você tem que erguer a cabeça para enxergar o céu. É uma cidade monumental, ela tem um lado escultural e feio também, porque não é uma cidade bonita. É uma cidade gigantesca da qual a natureza foi banida, ao passo que quem vem da Amazónia, ou de uma região onde a natureza é muito forte, muito presente, S. Paulo é uma cidade muito dura. Mas eu morei aqui na década de setenta. Morei dez anos em S. Paulo.

E durante esses anos, que fez em S. Paulo, estudava?
Eu estudei Arquitectura. Sou arquitecto. Exerci muito pouco minha profissão de arquitecto. Eu abandonei a arquitectura pela palavra…

Foi uma boa troca?
Acho que foi porque eu não gostava de projectar, não tinha a paixão pelo projecto como eu tenho a vontade e o desejo de escrever. E depois morei em vários lugares da Europa. Em Madrid, em Barcelona, morei em Paris vários anos…

Como foi parar à Europa?
Ganhei uma bolsa de um instituto de Madrid, o Instituto Ibero-Americano. E fui passar seis meses a Madrid, depois fui a Barcelona e trabalhei lá dando aulas de português, traduzindo um pouco para o espanhol. Depois fui para Paris. E de Paris eu voltei para Manaus. Depois de quinze anos de ausência. Mas foi na Europa onde eu me tornei escritor porque…

… porque teve saudades de Manaus?
Comecei a sentir falta do vocabulário amazónico, das paisagens da infância, daquilo que é essencial para um escritor. Porque eu acho que um escritor, todo mundo ficcional dele, todo o universo ficcional, está presente na sua infância, e na sua juventude. É como se ele vivesse vinte e cinco, trinta anos, e depois passasse o resto da vida escrevendo sobre essa primeira etapa da vida. Então eu sentia muita falta dessa vida que não existe mais, porque toda a infância é um paraíso perdido para sempre. Como dizia Proust. E já começava a sonhar em francês, eu achei isso, muito perigoso. Porque não conseguiria, jamais, escrever em francês.

Achou que estava a perder alguma identidade?
Não exactamente isso, porque a nossa identidade ela é tão difusa, pertence a tantas culturas, pelo menos a minha, eu que sou filho de imigrantes, que na infância convivi com vários idiomas, com o árabe, com o francês falado pela minha avó e, sobretudo, com o português…

Para o leitor não brasileiro -- provavelmente também para o leitor brasileiro --, o universo de que fala é completamente desconhecido, sobretudo do ponto de vista da literatura brasileira? Durante muito tempo, em Portugal, a literatura brasileira era dominada pelo chamado «paradigma baiano». Há uma certa transferência, depois para o eixo Rio-S.Paulo, mas tudo o que saía desse universo não era brasileiro. Viveu essa experiência de falar de uma realidade de que as pessoas ignoravam?
Quando eu publiquei o meu primeiro romance, foi uma surpresa. Foi uma surpresa para a crítica e para o leitor. Porque os críticos se perguntaram, como é que da Amazónia, de onde só se esperam histórias sobre índios e seringueiros e aventura da floresta, surge um romance sobre a emigração, sobre a memória, um drama familiar…

Um drama familiar, e a memória, mas desse ponto de vista da cultura árabe e libanesa…
Sim, mas acontece que nos meus romances, os imigrantes já são adaptados ao Brasil. O drama deles não é essa volta às origens…

Mas os seus romances são sobre a família. Esse universo reproduz, provavelmente, muito da cultura árabe.
Sim, muito da cultura árabe misturada com a cultura brasileira da Amazónia. Porque aí eu acho que isso é o tema de muitos ensaios sobre o meu trabalho. Essa cultura híbrida, essa literatura híbrida, que é a literatura de um país também híbrido.

terça-feira, novembro 09, 2004

Espinosa de A a Z

[Texto de Francisco José Viegas]
(c), revista LER. Portugal

ALBA – Alba Antunes é a namorada de um professor de arquitectura que aparece em O Silêncio da Chuva. Ainda não fez trinta anos e é a primeira mulher com quem o polícia dorme. Alba é professora e gerente de uma academia de ginástica em Copacabana e é ao seu lado que Espinosa usa pela primeira vez – na série de livros do delegado Espinosa – uma arma de fogo. Ela separa-se do seu namorado, mas a história com Espinosa termina com o penúltimo capítulo do livro.


ALFARRABISTAS – Os alfarrabistas (sebos, no Brasil) são a fonte de abastecimento literário do delegado Espinosa. Depois de mudar de uma delegacia do centro do Rio para a de Copacabana, a primeira coisa que faz é inventariar os sebos existentes nas redondezas. Muitas vezes evita certos caminhos entre a delegacia e a sua casa no Bairro do Peixoto, porque sabe que terá de entrar num deles para comprar mais uma edição de Swift ou um Conrad (como em Achados e Perdidos). São um perigo.

AMIZADE – Provavelmente, só o núcleo de três investigadores de Uma Janela em Copacabana ou o omnipresente Welber são seus amigos. Mais provavelmente ainda, só mesmo Welber, ou ainda Clodovaldo, o amigo dos meninos de rua que aparece em Achedos e Perdidos. Espinosa cultiva as relações de amizade, mas é um solitário militante. Num dos livros, há uma menina de doze anos que o acompanha todas as manhãs entre o Bairro do Peixoto e o centro de Copacabana (ela vai a caminho da escola): ela quer que Espinosa fique com um cão, para não viver sozinho e tenha um amigo a sério.

AMOR – Divorciado, o seu filho vive nos EUA com a mãe e não o vê há anos. Depois disso, só Irene (e, de passagem, Alba) teve um lugar «no seu coração», embora se apaixone por muitas mulheres ao longo das suas investigações. Mas o trabalho de polícia impede-o de comparecer a encontros ou de prestar mais atenção às mulheres cm quem podia viver (como a jovem pintora de Achados e Perdidos).

ARMAS – Em Achados e Perdidos roubam-lhe a arma. Em O Silêncio da Chuva ele dispara contra um carro em andamento. Não é um pistoleiro, Espinosa.

BEBIDAS – Coca-Cola, chope, cerveja de lata, vinho, milk-shake, café.

COMIDA – Espinosa não falha uma refeição: nem o café-da-manhã, o almoço ou o jantar. Em casa há sempre comida italiana congelada. Da rua traz vinhos, cervejas, comida síria (kibe e esfihas) e charcutaria alemã (frios). Vai a restaurantes quase diariamente e conhece verdadeiras preciosidades nas ruas mais recônditas de Copacabana, embora frequente pizarias e trattorias com bastante frequência. Quando Irene vai ao seu apartamento abastece o frigorífico de carnes frias, queijos e vinhos – ela gosta muito de comer, e vão a bastantes restaurantes. Com Alba, apenas encomendaram pizza e passaram por um restaurante. Welber tenta convencê-lo a adoptar um «regime alimentar saudável» (influência da sua namorada), mas Espinosa gosta de almoçar sanduíche de pernil ou presunto e, muitas vezes, de comprar cheeseburgers e milk-shakes para se sentar num banco debaixo de uma árvore, na praia de Copacabana.

COPACABANA – É o mapa de todos os acontecimentos. Do Leme à Gávea, Copacabana está quase toda nos livros de Garcia-Roza: ruas, praças, restaurantes pouco frequentados, barracas de comida, alfarrabistas, hotéis, pracetas cheias de árvores, a praia, o calçadão da Avenida Atlântica, personagens do submundo local, cadáveres. O Bairro do Peixoto é o centro do mundo e quase todos os personagens dos seus livros acabam por cruzar-se com o lugar onde vive Espinosa.

CORPO – Espinosa vê-se ao espelho algumas vezes e tem angústias de homem de meia-idade. Alba Antunes, a única mulher que andou nua nos seus livros, diz-lhe que é «enxuto».

CORRUPÇÃO – A polícia é, por vezes, descrita como um pântano de corrupção. Em Uma Janela em Copacabana e em Achados e Perdidos, esse tema aparece como central. O assunto é abjecto para Espinosa, o que o leva – no primeiro desses livros – a escolher um núcleo de polícias que esteja a salvo das «propinas», esquemas de obtenção de fundos ilegais ou negócio de drogas.

ESTANTES – Numa casa em que os livros são elementos fundamentais, Espinosa nunca teve tempo para mandar fazer estantes. Num dos livros, ocupa uma manhã de sábado a desenhar uma estante, mas nunca consultou uma carpintaria: os livros continuam arrumados em pilhas que sobem até metade da parede da sala, deitados uns sobre os outros de modo a poder ler as lombadas.

IML – O delegado Espinosa recorre muitas vezes ao Instituto de Medicina Legal e tem fontes especiais dentro da instituição. Por isso, recebe relatórios antes de estarem escritos.

INSÓNIA – É frequentemente atacado por insónias, o que o leva a adormecer, depois, no sofá. A janela diante do sofá fica diante de outras janelas, do outro lado da praça do Bairro do Peixoto. Em O Silêncio da Chuva as duas últimas noites são alucinantes.

IRENE – Encontra Irene em Vento do Sudoeste: ela trabalha em São Paulo ou no estrangeiro, é moderadamente rica ou bem paga, e frequenta a ponte aérea para o Rio. Ela teve uma relação amorosa com uma mulher que é assassinada nesse livro, o que, não sendo um choque propriamente dito para Espinosa, o leva a pensar bastante sobre o assunto, não apenas nesse livro mas também em Uma Janela em Copacabana. Irene apaixonou-se primeiro por Espinosa mas Espinosa recompensou-a e lamenta quando se desencontram, ao longo dos livros. Em Uma Janela em Copacabana, Espinosa convida-a para jantar em São Paulo ao fim desse dia: apanha o avião e é à mesa, em São Paulo, que reconstitui o crime e falam sobre «o futuro». O futuro mantém-se igual ao presente, porque nenhum dos dois quer casar.

LIVROS – Espinosa mantém com os livros uma relação amorosa e obsessiva. Órfão, foi a avó que o levou a amar os livros: grande parte dos que guarda no seu apartamento são herança familiar. Conrad, Swift ou Durrell são algumas das leituras. Os seus diálogos são formados nessas leituras, mas também a sua imaginação. É cuidadoso no que diz respeito a traduções e cuidados de edição.

MAL – O mal é uma categoria narrativa, tão presente quanto indecifrável ou flutuante. A verdade é que só poucos personagens são «totalmente maus» e é já tarde quando Espinosa se dá conta disso. Em O Silêncio da Chuva, Aurélio é uma dessas figuras delimitadas e definitivas, mas em Uma Janela em Copacabana mulheres e homens atravessam constantemente a fronteira que separa o bem do mal. Em Vento do Sudoeste, o assassino premeditado (Gabriel) nunca aparece bem definido e é uma velhinha moralista e religiosa que aparece a substituir todas as emanações do mal.

MELANCOLIA – Espinosa é um melancólico. Em parte devido às suas leituras, à sua solidão e à leveza extraordinária da sua Copacabana. Não fica deprimido com o mar visto da Avenida Atlântica, mas em Vento do Sudoeste sabe que está diante de um poder que ultrapassa a própria vontade – deixa-se dominar por essa corrente de sensibilidade e de melancolia até Irene aparecer para o redimir. As manhãs de sábado e os fins-de-semana com os livros podem ser excepção, mas apenas aparentemente.

MENINOS DA RUA – Em Achados e Perdidos um menino da rua transforma-se em personagem involuntário do livro e acaba morto. Um outro é queimado vivo. Se há alguma coisa que exaspera Espinosa é a violência sobre eles. A descrição é simplesmente notável.

MULHERES – Quando conhece uma mulher, Espinosa pergunta-se se seria possível algum tipo de relação. Acontece assim com Bia, a jovem e bela viúva de O Silêncio da Chuva, com a observadora ou com a assassina de Uma Janela em Copacabana, com a pintora de Achados e Perdidos (chega a dormir em casa dela, no Catete, mas desiste – embora passe o Natal com ela). Tanto é compreensivo e paternal (com a filha do psiquiatra de O Perseguido) como severo e desconfiado (com a prostituta de Achados e Perdidos, Clô), ou se apresenta abandonado e desprotegido (com Irene ou Alba, a quem pretende proteger, de resto).

PSIQUIATRAS – Em O Perseguido, um psiquiatra sente-se perseguido por um jovem paciente que acaba por namorar com uma das suas filhas. Tenso até à última página, o livro é arrasador para o psiquiatra, e nunca se conhecerá definitivamente o desfecho de uma história tão estranha.

ROUPA – Espinosa não veste fatos (ternos, no Brasil) e por vezes usa uma bermuda e t-shirt para passar o dia andando a pé por Copacabana. Alguma coisa o distingue dos outros polícias dos seus livros: um paletó é a única peça distintiva.

SEXO – Muitas vezes, é empurrado pelas próprias mulheres, mas apeteceu-lhe desde o primeiro olhar trocado com Alba ou com Irene. Já com a pintora de Achados e Perdidos manteve sempre um pudor discreto e paternal. Ela queria, mas o enredo corria demasiado depressa e havia muitas mortes. Se é verdade que não tem sentimentos de culpa em relação ao sexo, o mesmo já não acontece em relação aos silêncios do sexo, propriamente ditos.

TELEFONE – O telefone é uma obsessão nos seus livros. Quando o ritmo é movimentado e veloz, o telefone aparece como um personagem. Mas o lugar de destaque vai para a «secretária electrónica» (gravador de chamadas) de sua casa, com a luz vermelha piscando no meio da escuridão. Todas as histórias passam por ela.

TORRADAS – Nas manhãs de sábado e de domingo, Espinosa duplica a dose de torradas e de café – e lê o jornal com mais demora. As torradas são um momento de normalidade alimentar e em Uma Janela em Copacabana é assaltado por um amor dedicado pela velha torradeira que pretende substituir sem sucesso: ela só torra o pão de um dos lados, mas amor é amor. Ela continuará em casa.

WELBER – O jovem polícia exemplar que coadjuva Espinosa é também o único em quem ele confia, sobretudo para investigações ainda não oficiais. Welber é sensato, dedicado, tem cuidado com o colesterol e é bem-educado e trabalhador. Um raio de luz no meio da esquizofrenia.

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OS LIVROS DE ESPINOSA: O Silêncio da Chuva (1996); Achados e Perdidos (1998); Uma Janela em Copacabana (2001); Vento Sudoeste (1999); Perseguido (2002). [Edição Companhia das Letras; os três primeiros estão publicados em Portugal pela Gótica]

OS OUTROS LIVROS DE GARCIA-ROZA: Psicologia Estrutural (1972); Freud e o Inconsciente (1984) Acaso e Repetição em Psicanálise (1986); O Mal Radical em Freud (1990); Palavra e Verdade (1990); Introdução à Metapsicologia Freudiana, 1: Sobre as Afasias (1991); Introdução à Metapsicologia Freudiana, 2: A Interpretação do Sonho (1993); Introdução à Metapsicologia Freudiana, 3: Artigos de Metapsicologia 1995). [Todos os livros foram publicados pela editora Jorge Zahar à excepção do primeiro, pela Vozes]

Garcia-Roza entrevistado na LER

Esta entrevista a Garcia-Roza foi publicada na edição de Outono de 2004 da revista Ler, de Portugal. Reproduzida na íntegra.

O Philip Marlowe brasileiro

[Entrevista de Francisco José Viegas]

Luiz Alfredo Garcia-Roza nasceu em 1936, no Rio de Janeiro, Copacabana. Foi professor de psicanálise e de filosofia. Há dez anos decidiu que não se despedia da universidade senão para escrever ficção, sonho de uma vida inteira: nasceu então a figura do delegado Espinosa, o herói das suas histórias policiais, de que já existem três títulos publicados em Portugal – O Silêncio da Chuva, Achados e Perdidos e Uma Janela em Copacabana. Todas as investigações deste polícia com nome de filósofo se passam nesse lugar romântico e luminoso, Copacabana. E, se em nenhum deles desaparece a luz do Rio de Janeiro, há um fio de sangue e de pânico a sitiar cada personagem. O Philip Marlowe brasileiro vive à vista do mar e da Avenida Atlântica.

O seu primeiro policial foi de 1996, O Silêncio da Chuva, e recebeu logo dois dos prémios mais prestigiados do Brasil, o Jabuti e o Nestlé. Nessa altura era professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dirigia estudos de psicanálise e de psicologia na universidade, e tinha publicado uma boa lista de livros sobre a matéria. Sobretudo sobre psicanálise…

Não muitos, mas uma quantidade razoável…

Oito…

Alguns de filosofia outros especificamente de psicanálise e, mais especificamente ainda, sobre teoria psicanalítica. A estrutura da teoria psicanalítica era o que mais me preocupou durante a minha vida de académico.

É um freudiano?

Sim, acho que sim. E análise que eu fiz da teoria psicanalítica era exclusivamente freudiana.

Como é que decidiu mudar? Do género «adeus a Freud, agora vou dedicar-me à literatura policial»? Foi uma opção?

Foi uma opção. E deliberada. Eu tinha uma vida universitária bastante longa, já estava na universidade há trinta e cinco anos e já tinha feito o que me tinha proposto fazer enquanto académico, enquanto professor. Dali para a frente a coisa andaria quase como aproveitando o impulso, ladeira abaixo, por si própria… Muita gente faz isso. Então, achei que era a altura de fazer um corte com a universidade e com a vida académica, na qual tive um razoável sucesso. Achei que podia sair sem ficar com um sentimento de perda. Que podia fazer mais, que podia fazer outras coisas.

Sem se aposentar?

Bom, a ideia era escrever sem me aposentar, sim. A opção que eu coloquei e que correspondia a uma fantasia antiga, era a de escrever ficção. Mas eu nunca tinha escrito ficção de natureza alguma. Todos os meus escritos tinham sido escritos teóricos. O que me fascinava era a abertura, a liberdade que o escritor de ficção pode usufruir. E resolvi fazer uma primeira tentativa. A primeira escolha foi O Silêncio da Chuva. Escrevi e enviei para a editora que eu considerava no Brasil uma das melhores editoras de ficção...

A Companhia das Letras…

Isso. Nunca esperei que acontecesse o que aconteceu. O livro ganhou dos prémios e isso foi como um aval da comunidade literária, dizendo que eu poderia escrever, que eu podia continuar escrevendo. Aí, eu achei que era incompatível continuar a escrever ficção e manter a vida académica, Eu era coordenador de um curso sobre psicanálise, orientava teses, fazia conferências… Era impossível. Então, saí da universidade e me aposentei.

Só nessa altura…

Só nessa altura. Depois de ter escrito O Silêncio da Chuva e de me terem proposto continuar a escrever ficção de uma forma, digamos, profissional. Pelo menos não amadorística.

Disse que foi uma opção deliberada. Mas porquê policial?

Porque eu sempre gostei de literatura policial. Desde que comecei a minha vida académica, todas as minhas leituras académicas sempre foram paralelas à leitura de literatura policial. Desde os meus dezasseis anos que sou um leitor de literatura policial, Dashiell Hammet, Raymond Chandler sobretudo. E a literatura policial fascinava-me e fascina-me até hoje pelo facto de o seu cerne ser constituído por um conjunto de questões que eu considero fundamentais: sobre a morte, o assassinato, a sexualidade…

No seu caso, ainda por cima, sobre o desaparecimento. O desaparecimento é uma categoria sempre presente nos seus livros… Há muitos desaparecidos.

Isso é verdade, o desaparecimento é uma categoria. Essas questões são fundamentais. Habitaram o mito, a poesia arcaica. Todos os grandes autores trataram essas categorias central ou marginalmente, mas eu acho que a literatura policial trata delas de uma forma absolutamente desprovida de qualquer disfarce.

José Cardoso Pires dizia que, em última instância, toda a literatura é policial…

Eu concordo plenamente. E Borges dizia isso também: que no fundo o romance policial é o único que tem uma estrutura formal definida, como se fosse o modelo do próprio romance. Não sei até que ponto é que se pode estender a estrutura do romance policial à do romance em geral, mas parece-me haver quase uma dependência. E, pessoalmente, é uma estrutura que me agrada profundamente.

E, depois, temos um caso especial, o do delegado Espinosa… Porquê Espinosa? Era um dos seus filósofos, na universidade?

Eu tenho uma paixão particular por Espinosa, sim. Toda a minha vida universitária foi dividida entre a filosofia, por um lado, e a psicologia e a psicanálise, por outro. Ora, Espinosa é um pensador sem igual. Ele é um dos grandes génios da filosofia, um homem de uma coerência e de uma consistência espantosas. E sobretudo um ser humano absolutamente invejável, de uma integridade ética notável, a toda a prova. Espinosa reuniu sempre, para mim, o máximo da racionalidade e o máximo da sensibilidade. E essa integridade. Ele conseguia ser intenso e íntegro ao mesmo tempo, o que é raro, raríssimo. Então, o delegado Espinosa é uma homenagem ao filósofo, sim – porque é também um homem íntegro. Apesar de ser um burocrata, um policial pertencente ao aparato do Estado, um homem de gabinete e de estar ligado à polícia que é atingida pela corrupção, ele é um sujeito íntegro. Ele, de alguma maneira, diz que é possível ser íntegro.

Então, temos um Espinosa, com nome de filósofo, transformado em investigador policial. Em personagem dos seus livros. Num deles, justamente O Silêncio da Chuva, uma das personagens, Alba, que pessoalmente tenho pena que tenha desaparecido nos livros…

…Era fascinante, sim [risos]…

…É Alba Antunes, professora numa academia de ginástica aqui de Copacabana, curiosamente, a única personagem que reconhece o nome do filósofo… É a primeira vez que aparece justificada a presença de Espinosa. E logo por uma mulher jovem, com um apetite sexual interessante, bonita… Não por um bibliotecário…

Mas tinha de ser, tinha de ser. Eu gosto de Espinosa. Não podia imaginar a cena de outra maneira, muito séria, chata, académica. Alba é bonita, com aquele apetite sexual todo, teria de ser ela a encontrar a referência ao filósofo, claro…

Há um universo curioso criado à volta de Espinosa. Não só à volta das suas investigações, dos seus inquéritos, mas também em volta de si próprio. Ele é o epicentro de um universo em que entram as mulheres, a comida (a relação de Espinosa com a comida), e o próprio Rio de Janeiro. É um novo Rio, não aquele dos postais, da bossa-nova, dos turistas de Copacabana. O que mais me surpreendeu é que o Rio, sobretudo a zona Sul (o Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon), aparece transformado num cenário melancólico, romântico. É uma nova imagem do Rio…

Acho que essa imagem é a que mais me conforta, sim. Você coloca o Espinosa como epicentro desse universo, acho a imagem perfeita. Ele não é necessariamente, nos romances, o personagem mais importante, mas é o personagem em torno do qual giram os outros todos, alguns mais importantes do que ele para o desenvolvimento da história. A própria cidade forma um contexto para Espinosa. Essa cidade, sobretudo a Copacabana de Espinosa, não pode ser de cartão postal, embora seja impossível retirar a beleza do Rio, que é uma beleza que sempre me impressionou, que não se pode esconder. A beleza é quase uma doença do Rio. E depois tem esse lado feminino do Rio, de Copacabana… Isso eu não posso eliminar, embora a cidade não seja redutível a isso. Copacabana é um cosmos plenamente habitado, cheio de gente. Não apenas turistas e gente rica, mas também por uma vida extremamente rica, com o seu submundo muito complexo. Quem vê as ruas de Copacabana não o nota ao primeiro olhar, mas ele está lá. E tem esse tom que você assinalou, e que é raro mencionar-se, que é um tom melancólico…

Espinosa tem uma relação melancólica com essa parte do Rio, com a Gávea, com Copacabana, com fragmentos de Ipanema…

Talvez uma contrapartida em relação à sua beleza extrema, sim… À pressão excessiva da beleza.

Há um sábado, em Vento do Sudoeste, em que Espinosa toca essa melancolia: não há sol, chove de vez em quando, o vento vem da Gávea e atravessa as esplanadas da Avenida Atlântica. Isso é novo na chamada literatura do Rio, que normalmente dá destaque à zona mais pobre (estou a pensar no caso do Paulo Lins, com A Cidade de Deus) ou então tem um ar high-society. E há esse bairro, o de Espinosa, o Bairro Peixoto…

O Bairro do Peixoto é um microbairro dentro de Copacabana. É um nome inapropriado, porque não chega a ser um bairro, é apenas um pequeno conjunto de dois quarteirões com uma praça no meio, bem interessante. Eu penso no Bairro do Peixoto como uma cidade medieval, com a muralha e, no meio, os seus prediozinhos de dois ou três andares, não mais, com o seu verde e que tem uma vida própria. Espinosa vive aí, a poucos metros da delegacia em que trabalha.

Espinosa é fascinante para as mulheres. Há leitoras suas que ficam fascinadas com aquele figura de solitário, divorciado, desprotegido, rodeado de livros empilhados e de comida congelada…

Não sei porque é que ele fascina as mulheres, tanto em Portugal como aqui no Brasil, mas é um facto, sim…

O senhor é psicanalista…

Bom… Talvez por causa desse desamparo, um desamparo fundamental que ele não consegue disfarçar. Isso, aliado à sua preguiça descontraída é que pode aumentar a dose de melancolia.

Provoca um sentimento maternal, é isso?

É possível... Todo o sentimento de desamparo pede alguém que proteja, que acolha. O desamparado pede sempre sobretudo para ser acolhido e o Espinosa talvez provoque essa coisa feminina de acolher… A mulher, eu acho sobretudo acolhedora. E Espinosa é um excêntrico desamparado. Aliás, mais do que um excêntrico na própria polícia, ele é um excêntrico no mundo…

Ele não é uma figura típica na polícia…

Não, de maneira nenhuma… É um estranho, um intelectual. Não usa os métodos da polícia mas, ao mesmo tempo, ele continua lá, na polícia. É um excêntrico no ninho, mas não sai do ninho.

Há uma relação estranha com a comida. Não é gastrónomo, como Nero Wolfe. Não é um cozinheiro, como Pepe Carvalho. Mas a comida é uma preocupação permanente, ele tem uma boa relação com a comida. Em O Silêncio da Chuva Espinosa estabelece os seus três níveis de gastronomia – alemã, quando compra carnes frias na charcutaria; síria ou libanesa, quando compra kibe ou esfiha numa barraquinha de rua; ou italiana, quando descongela uma lasanha à bolonhesa em casa…

Eu gosto de comida italiana, de comida árabe e de comida alemã. Na verdade, a marca dessas três gastronomias tem a ver com o carácter prático dessas comidas. São coisas prêt-a-porter, sem precisar de uma empregada, sem precisar de cozinhar, sem precisar de trabalhar. A marca fundamental da relação de Espinosa com a gastronomia é essa: sem trabalho.

Mas não é uma relação de tédio…

Nunca, nunca… Ele tem sabor, preza muito a comida, e quando quer comer bem – o que acontece muitas vezes – vai a um restaurante italiano… A comida tem a ver, suponho eu, com essa necessidade de protecção sentida por Espinosa: refeições, ritmos, sabor, calor, qualquer coisa que enternece o corpo.

E o mundo das mulheres… Irene é a grande mulher de Espinosa desde que se conhecem em Vento do Sudoeste. Desde essa altura que se encontram e o Garcia-Roza é como que o biógrafo dessa relação sem prazo nem medida. Em Uma Janela em Copacabana Irene e Espinosa quase parecem um casal normal, mas no livro seguinte regressam ao seu «estado puro», ou seja, ao seu estado flutuante…

A biografia amorosa de Espinosa é uma das poucas coisas que, nos livros, mantém uma certa historicidade. Irene está presente em quase todos os livros, menos no primeiro. Daí para a frente aparece em todos e é a única personagem (com o polícia Welber) que pode ter uma biografia.

Eu tenho pena que tenha perdido a Alba Antunes…

Também eu… Alba é uma personagem forte que aparece no primeiro livro, no Silêncio da Chuva, mas que não tem sequência em livro nenhum. Sequência só o próprio Espinosa, o Welber e a Irene.

Mas Welber não é uma espécie de Watson de Sherlock Holmes…

Não, não é. Trata-se de uma relação entre o polícia mais velho e o polícia mais novo, com uma certa ternura, dedicação, como se o Espinosa o adoptasse como aquela pessoa em que ele deposita toda a confiança. Espinosa vive no seio de uma corporação policial em que grande parte está manchada pela corrupção, e não se sente confortável com os colegas de trabalho, de quem desconfia sempre, ou de quem tem de desconfiar…

…o que é o tema em Uma Janela em Copacabana e em Achados e Perdidos, sobretudo…

Apenas dois polícias lhe merecem confiança. Há um terceiro, que só aparece no último, O Perseguido… Mas esses são os que ele destaca, sendo que, no caso do Welber, Espinosa deposita toda a confiança. É um meio muito esquizofrénico, em que a polícia não trabalha apenas com suspeitos externos (os criminosos, os homicidas, os ladrões), mas também com suspeitos no interior da corporação. Muitas vezes suspeitos íntimos. A polícia vai combater o mal, mas esse mal está muitas vezes dentro da própria polícia, o que cria uma situação absurda muitas vezes, porque o mal deixa de ser o estranho para ser, também, o íntimo, aquele que está a seu lado, com quem conversa enquanto toma um café. Se você não se defende disso, está perdido, envolvido nas malhas dessa corrupção. É uma situação desconfortável.

O mal que vive ao lado é um tema omnipresente nesses livros, e logo no primeiro livro, O Silêncio da Chuva, é representado por Aurélio, um velho amigo de Espinosa…

O Aurélio é um personagem que encarna todo o mal: inteligente, afável, companheirão, íntimo. E, no fundo, é a imagem do mal. Todos temos essa presença permanente, ao nosso lado. O problema não é o de se saber em quem confiar, mas o de não se saber de quem não desconfiar. Espinosa vive rodeado desse pânico.

E há esse outro lado de Espinosa, o da solidão extrema…

No caso da polícia, no caso do seu trabalho, é uma espécie de protecção permanente. Através da solidão, ele defende-se do contágio de um meio doente e abjecto. Na sua vida particular, acho que isso se deve ao facto de ele ser um céptico que não tem grandes ilusões a respeito da vida, ou dos outros, ou do amor, ou das suas próprias leituras.

Mas não é um cínico, ou seja, não é um cínico como os cépticos do policial americano, como Marlowe. É céptico como os heróis de Montalbán ou dos livros do comissário Montalbano…

É verdade, porque esse cepticismo faz dele um crítico. É possível que esse cepticismo produza um certo afastamento em relação aos outros, porque um céptico está condenado a poder levar as suas críticas até ao fim. Por isso, ele afasta-se dos outros, para se defender de ter de levar as críticas até ao fim. Mas ele não é um profissional absolutamente seguro, de qualquer modo. Ele sabe que qualquer investigação é um caminho no fio da navalha.

Aliás, ele falha bastante durante as investigações…

Sim, porque Espinosa não é o polícia infalível. É o falível, justamente. É esse sentimento de falibilidade, a percepção de que não é o grande génio de Poirot, um herói como Marlowe, de que é um homem comum investido de um certo poder, que o leva a ser visto como um homem que aceita o seu destino, a sua solidão, a sua timidez diante das mulheres (que são sempre mais ousadas, de resto), até os seus medos…

É um polícia credível?

Acho que sim. Quer dizer, não é impossível encontrar um Espinosa na polícia brasileira. Eu, inclusive, encontrei um que, infelizmente, morreu num acidente de automóvel. Encontrei-o durante as primeiras pesquisas que fiz para desenhar o personagem.

Fez muitas pesquisas?

Fiz algumas. Não propriamente pesquisas, mas entrevistas em delegacias… E encontrei um delegado que me espantou. Estávamos a falar sobre os métodos policiais, a investigação criminal propriamente dita e, a certa altura, dou com ele a dizer-me: «O senhor sabe, a nossa actividade não é de episteme, é uma actividade de dóxa, nós trabalhamos com a opinião e não com o conhecimento.» Achei espantoso um polícia dizer uma coisa daquelas, lidando com a oposição entre conhecimento e opinião, inclusive citando os termos gregos, eu fiquei perplexo… Ele era real, existia, era polícia. Lamentavelmente morreu num acidente de automóvel. Às vezes a opinião banal sobre a polícia – de que tudo é corrupção, de que se trata de gente sem formação e sem escrúpulos – também pode ser um pouco injusta. Encontram-se, digamos, excepções fulgurantes…

Essa desconfiança também acontece com outras profissões como, por exemplo, os psiquiatras. Um dos seus livros, O Perseguido, tem como personagem principal um psiquiatra… Tem a ver com a sua vida profissional anterior?

Não propriamente, porque eu fui sobretudo um teórico, interessei-me sobretudo pela psicanálise, nunca exerci clínica… O psiquiatra vive numa situação de ambiguidade, vive numa zona de fronteira entre a sanidade e a loucura. Tal como o polícia, vive numa outra zona de fronteira, entre a criminalidade e o desejo de castigar ou de compreender. O polícia e o psiquiatra vivem nesse limiar que é fácil transpor e violar, e isso é que é perigoso – essa diferença sem diferenças absolutamente definidas. E, num pequeno lapso de tempo, já se está do lado de lá sem se saber se está do lado de lá ou do lado de cá. Nesse livro, o plot, a história, vive nessa região de fronteira que idealmente separa esses dois mundos, mas que se esvai muito rapidamente, até que mal e bem ou sanidade e loucura se confundem e passem a ser um mundo só. Quem é o louco e quem é o psiquiatra, quem é o paciente e quem é o médico, quem persegue quem? Essa paranóia que está presente não só no mundo psiquiátrico como, também, no mundo policial, eu acho que não há nem necessidade de ter uma experiência clínica. Não são barreiras, são fronteiras muito facilmente transpostas, pouco claras, pouco nítidas. Isso é definitivo para marcar o isolamento do Espinosa, que procura protecção permanentemente, e às vezes aparece como um personagem um pouco conservador, justamente porque sabe que é fácil pisar o risco e não regressar.

Por outro lado, a história de O Perseguido é uma história familiar trágica…

Sim, completamente trágica, isso mesmo. Nem é propriamente policial, no sentido em que não há um enredo tradicional. Os personagens vão desaparecendo, toda a gente da família vai desaparecendo. Dos cinco livros, O Perseguido é o mais inquietante, para mim. Talvez até o mais pesado

Estou a ver na sala onde trabalha um mapa ao pormenor da zona sul do Rio, a zona onde deambula o seu personagem…

É um mapa de Copacabana. Só de Copacabana.

Num dos seus livros, O Perseguido, aparecem mapas de Copacabana para mostrar melhor onde se situa a acção…

Para que os leitores se situem… Neste mapa, aqui na parede, eu vejo cada prédio de Copacabana, cada beco, cada jardim. Ele tem a localização de cada parede, é um retrato do espaço em que o Espinosa opera. No máximo tomo como referência esse mapa, não uso muitos outros materiais além deste. Só memória. E imaginação. Eu nasci em Copacabana, cresci em Copacabana e morei em Copacabana toda a vida…

Mudou muito, Copacabana?

Muito, muito… Quando eu era menino não havia prédios em Copacabana, e hoje só há prédios. É raro encontrar uma casa. A área alberga uma concentração humana espantosa, uma quantidade de gente inacreditável para o tamanho do bairro, que é muito pequeno. É um meio pequeno. Atravessa-se facilmente a pé nos dois sentidos, do mar à montanha e de uma ponta à outra. Mas eu passeio muito pelo bairro. O meu próximo livro vai ser ainda mais concentrado em Copacabana…

Ainda mais?

Ainda mais, no meio de Copacabana, perto do Bairro Peixoto, onde mora Espinosa, mas trata-se de uma história sem Espinosa…

Isso é uma traição aos leitores…

Provavelmente, mas decidi dar-lhe umas férias… É um risco necessário de correr porque tenho um certo temor de que o personagem que se trabalha em todos os livros comece a cansar. Ele comece a cansar-me. Eu comece a cansá-lo. E ambos cansem os leitores. Pelo perigo da repetição. Isso acontece quando a criação dá lugar à produção, e é um perigo fatal para um escritor, penso eu. Tenho muito medo disso. Quando abandonei a escrita académica foi precisamente para me livrar da produção intelectual como uma espécie de linha de montagem, e partir para a criação ficcional pura, o que era uma coisa nova em mim…

Muitas vezes, o que os leitores de policiais procuram é a repetição de uma fórmula e de um conjunto de circunstâncias, de um processo de investigação… Ou seja, o leitor de policiais gosta de um certo grau de previsibilidade para averiguar até que ponto o autor é capaz de ludibriá-lo…

O que nós procuramos no romance policial é o facto de ele para o seu cerne, aquilo que é o cerne de cada um de nós. E fazendo isso cruamente. Sem grandes fantasias, sem grandes farsas. Isso é a marca fundamental do livro policial. Agora, concordo que a repetição tem um certo peso, sim. O Rex Stout, com o Nero Wolfe, consegue uma repetição infindável, são cerca de oitenta livros, e ficamos sempre fascinados com aquilo…

…e não se trata de um bairro como Copacabana, mas de uma casa na Rua Trinta e Cinco…

Pois é… Uma casa. Repetição fabulosa, não? Bom, mas eu não pretendo matar o Espinosa, mas só dar-lhe umas férias, ele deve estar um pouco cansado de mim. Vai continuar a existir, até porque tem admiradores. Sobretudo admiradoras.