terça-feira, novembro 09, 2004

Espinosa de A a Z

[Texto de Francisco José Viegas]
(c), revista LER. Portugal

ALBA – Alba Antunes é a namorada de um professor de arquitectura que aparece em O Silêncio da Chuva. Ainda não fez trinta anos e é a primeira mulher com quem o polícia dorme. Alba é professora e gerente de uma academia de ginástica em Copacabana e é ao seu lado que Espinosa usa pela primeira vez – na série de livros do delegado Espinosa – uma arma de fogo. Ela separa-se do seu namorado, mas a história com Espinosa termina com o penúltimo capítulo do livro.


ALFARRABISTAS – Os alfarrabistas (sebos, no Brasil) são a fonte de abastecimento literário do delegado Espinosa. Depois de mudar de uma delegacia do centro do Rio para a de Copacabana, a primeira coisa que faz é inventariar os sebos existentes nas redondezas. Muitas vezes evita certos caminhos entre a delegacia e a sua casa no Bairro do Peixoto, porque sabe que terá de entrar num deles para comprar mais uma edição de Swift ou um Conrad (como em Achados e Perdidos). São um perigo.

AMIZADE – Provavelmente, só o núcleo de três investigadores de Uma Janela em Copacabana ou o omnipresente Welber são seus amigos. Mais provavelmente ainda, só mesmo Welber, ou ainda Clodovaldo, o amigo dos meninos de rua que aparece em Achedos e Perdidos. Espinosa cultiva as relações de amizade, mas é um solitário militante. Num dos livros, há uma menina de doze anos que o acompanha todas as manhãs entre o Bairro do Peixoto e o centro de Copacabana (ela vai a caminho da escola): ela quer que Espinosa fique com um cão, para não viver sozinho e tenha um amigo a sério.

AMOR – Divorciado, o seu filho vive nos EUA com a mãe e não o vê há anos. Depois disso, só Irene (e, de passagem, Alba) teve um lugar «no seu coração», embora se apaixone por muitas mulheres ao longo das suas investigações. Mas o trabalho de polícia impede-o de comparecer a encontros ou de prestar mais atenção às mulheres cm quem podia viver (como a jovem pintora de Achados e Perdidos).

ARMAS – Em Achados e Perdidos roubam-lhe a arma. Em O Silêncio da Chuva ele dispara contra um carro em andamento. Não é um pistoleiro, Espinosa.

BEBIDAS – Coca-Cola, chope, cerveja de lata, vinho, milk-shake, café.

COMIDA – Espinosa não falha uma refeição: nem o café-da-manhã, o almoço ou o jantar. Em casa há sempre comida italiana congelada. Da rua traz vinhos, cervejas, comida síria (kibe e esfihas) e charcutaria alemã (frios). Vai a restaurantes quase diariamente e conhece verdadeiras preciosidades nas ruas mais recônditas de Copacabana, embora frequente pizarias e trattorias com bastante frequência. Quando Irene vai ao seu apartamento abastece o frigorífico de carnes frias, queijos e vinhos – ela gosta muito de comer, e vão a bastantes restaurantes. Com Alba, apenas encomendaram pizza e passaram por um restaurante. Welber tenta convencê-lo a adoptar um «regime alimentar saudável» (influência da sua namorada), mas Espinosa gosta de almoçar sanduíche de pernil ou presunto e, muitas vezes, de comprar cheeseburgers e milk-shakes para se sentar num banco debaixo de uma árvore, na praia de Copacabana.

COPACABANA – É o mapa de todos os acontecimentos. Do Leme à Gávea, Copacabana está quase toda nos livros de Garcia-Roza: ruas, praças, restaurantes pouco frequentados, barracas de comida, alfarrabistas, hotéis, pracetas cheias de árvores, a praia, o calçadão da Avenida Atlântica, personagens do submundo local, cadáveres. O Bairro do Peixoto é o centro do mundo e quase todos os personagens dos seus livros acabam por cruzar-se com o lugar onde vive Espinosa.

CORPO – Espinosa vê-se ao espelho algumas vezes e tem angústias de homem de meia-idade. Alba Antunes, a única mulher que andou nua nos seus livros, diz-lhe que é «enxuto».

CORRUPÇÃO – A polícia é, por vezes, descrita como um pântano de corrupção. Em Uma Janela em Copacabana e em Achados e Perdidos, esse tema aparece como central. O assunto é abjecto para Espinosa, o que o leva – no primeiro desses livros – a escolher um núcleo de polícias que esteja a salvo das «propinas», esquemas de obtenção de fundos ilegais ou negócio de drogas.

ESTANTES – Numa casa em que os livros são elementos fundamentais, Espinosa nunca teve tempo para mandar fazer estantes. Num dos livros, ocupa uma manhã de sábado a desenhar uma estante, mas nunca consultou uma carpintaria: os livros continuam arrumados em pilhas que sobem até metade da parede da sala, deitados uns sobre os outros de modo a poder ler as lombadas.

IML – O delegado Espinosa recorre muitas vezes ao Instituto de Medicina Legal e tem fontes especiais dentro da instituição. Por isso, recebe relatórios antes de estarem escritos.

INSÓNIA – É frequentemente atacado por insónias, o que o leva a adormecer, depois, no sofá. A janela diante do sofá fica diante de outras janelas, do outro lado da praça do Bairro do Peixoto. Em O Silêncio da Chuva as duas últimas noites são alucinantes.

IRENE – Encontra Irene em Vento do Sudoeste: ela trabalha em São Paulo ou no estrangeiro, é moderadamente rica ou bem paga, e frequenta a ponte aérea para o Rio. Ela teve uma relação amorosa com uma mulher que é assassinada nesse livro, o que, não sendo um choque propriamente dito para Espinosa, o leva a pensar bastante sobre o assunto, não apenas nesse livro mas também em Uma Janela em Copacabana. Irene apaixonou-se primeiro por Espinosa mas Espinosa recompensou-a e lamenta quando se desencontram, ao longo dos livros. Em Uma Janela em Copacabana, Espinosa convida-a para jantar em São Paulo ao fim desse dia: apanha o avião e é à mesa, em São Paulo, que reconstitui o crime e falam sobre «o futuro». O futuro mantém-se igual ao presente, porque nenhum dos dois quer casar.

LIVROS – Espinosa mantém com os livros uma relação amorosa e obsessiva. Órfão, foi a avó que o levou a amar os livros: grande parte dos que guarda no seu apartamento são herança familiar. Conrad, Swift ou Durrell são algumas das leituras. Os seus diálogos são formados nessas leituras, mas também a sua imaginação. É cuidadoso no que diz respeito a traduções e cuidados de edição.

MAL – O mal é uma categoria narrativa, tão presente quanto indecifrável ou flutuante. A verdade é que só poucos personagens são «totalmente maus» e é já tarde quando Espinosa se dá conta disso. Em O Silêncio da Chuva, Aurélio é uma dessas figuras delimitadas e definitivas, mas em Uma Janela em Copacabana mulheres e homens atravessam constantemente a fronteira que separa o bem do mal. Em Vento do Sudoeste, o assassino premeditado (Gabriel) nunca aparece bem definido e é uma velhinha moralista e religiosa que aparece a substituir todas as emanações do mal.

MELANCOLIA – Espinosa é um melancólico. Em parte devido às suas leituras, à sua solidão e à leveza extraordinária da sua Copacabana. Não fica deprimido com o mar visto da Avenida Atlântica, mas em Vento do Sudoeste sabe que está diante de um poder que ultrapassa a própria vontade – deixa-se dominar por essa corrente de sensibilidade e de melancolia até Irene aparecer para o redimir. As manhãs de sábado e os fins-de-semana com os livros podem ser excepção, mas apenas aparentemente.

MENINOS DA RUA – Em Achados e Perdidos um menino da rua transforma-se em personagem involuntário do livro e acaba morto. Um outro é queimado vivo. Se há alguma coisa que exaspera Espinosa é a violência sobre eles. A descrição é simplesmente notável.

MULHERES – Quando conhece uma mulher, Espinosa pergunta-se se seria possível algum tipo de relação. Acontece assim com Bia, a jovem e bela viúva de O Silêncio da Chuva, com a observadora ou com a assassina de Uma Janela em Copacabana, com a pintora de Achados e Perdidos (chega a dormir em casa dela, no Catete, mas desiste – embora passe o Natal com ela). Tanto é compreensivo e paternal (com a filha do psiquiatra de O Perseguido) como severo e desconfiado (com a prostituta de Achados e Perdidos, Clô), ou se apresenta abandonado e desprotegido (com Irene ou Alba, a quem pretende proteger, de resto).

PSIQUIATRAS – Em O Perseguido, um psiquiatra sente-se perseguido por um jovem paciente que acaba por namorar com uma das suas filhas. Tenso até à última página, o livro é arrasador para o psiquiatra, e nunca se conhecerá definitivamente o desfecho de uma história tão estranha.

ROUPA – Espinosa não veste fatos (ternos, no Brasil) e por vezes usa uma bermuda e t-shirt para passar o dia andando a pé por Copacabana. Alguma coisa o distingue dos outros polícias dos seus livros: um paletó é a única peça distintiva.

SEXO – Muitas vezes, é empurrado pelas próprias mulheres, mas apeteceu-lhe desde o primeiro olhar trocado com Alba ou com Irene. Já com a pintora de Achados e Perdidos manteve sempre um pudor discreto e paternal. Ela queria, mas o enredo corria demasiado depressa e havia muitas mortes. Se é verdade que não tem sentimentos de culpa em relação ao sexo, o mesmo já não acontece em relação aos silêncios do sexo, propriamente ditos.

TELEFONE – O telefone é uma obsessão nos seus livros. Quando o ritmo é movimentado e veloz, o telefone aparece como um personagem. Mas o lugar de destaque vai para a «secretária electrónica» (gravador de chamadas) de sua casa, com a luz vermelha piscando no meio da escuridão. Todas as histórias passam por ela.

TORRADAS – Nas manhãs de sábado e de domingo, Espinosa duplica a dose de torradas e de café – e lê o jornal com mais demora. As torradas são um momento de normalidade alimentar e em Uma Janela em Copacabana é assaltado por um amor dedicado pela velha torradeira que pretende substituir sem sucesso: ela só torra o pão de um dos lados, mas amor é amor. Ela continuará em casa.

WELBER – O jovem polícia exemplar que coadjuva Espinosa é também o único em quem ele confia, sobretudo para investigações ainda não oficiais. Welber é sensato, dedicado, tem cuidado com o colesterol e é bem-educado e trabalhador. Um raio de luz no meio da esquizofrenia.

--------------------------------------------------------------------------------------------------

OS LIVROS DE ESPINOSA: O Silêncio da Chuva (1996); Achados e Perdidos (1998); Uma Janela em Copacabana (2001); Vento Sudoeste (1999); Perseguido (2002). [Edição Companhia das Letras; os três primeiros estão publicados em Portugal pela Gótica]

OS OUTROS LIVROS DE GARCIA-ROZA: Psicologia Estrutural (1972); Freud e o Inconsciente (1984) Acaso e Repetição em Psicanálise (1986); O Mal Radical em Freud (1990); Palavra e Verdade (1990); Introdução à Metapsicologia Freudiana, 1: Sobre as Afasias (1991); Introdução à Metapsicologia Freudiana, 2: A Interpretação do Sonho (1993); Introdução à Metapsicologia Freudiana, 3: Artigos de Metapsicologia 1995). [Todos os livros foram publicados pela editora Jorge Zahar à excepção do primeiro, pela Vozes]

1 Comentários:

Blogger Blog do Professor disse...

Faltou comentar a famosa "estante"de livros do delegado.Livros empilhados cuidadosamente contra a parede do quarto e apoiados entre si. Formam uma charmosa coluna de livros até a altura do peito de uma pessoa.

8:05 da tarde  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial