Esta entrevista a Garcia-Roza foi publicada na edição de Outono de 2004 da revista Ler, de Portugal. Reproduzida na íntegra.
O Philip Marlowe brasileiro
[Entrevista de Francisco José Viegas]
Luiz Alfredo Garcia-Roza nasceu em 1936, no Rio de Janeiro, Copacabana. Foi professor de psicanálise e de filosofia. Há dez anos decidiu que não se despedia da universidade senão para escrever ficção, sonho de uma vida inteira: nasceu então a figura do delegado Espinosa, o herói das suas histórias policiais, de que já existem três títulos publicados em Portugal – O Silêncio da Chuva, Achados e Perdidos e Uma Janela em Copacabana. Todas as investigações deste polícia com nome de filósofo se passam nesse lugar romântico e luminoso, Copacabana. E, se em nenhum deles desaparece a luz do Rio de Janeiro, há um fio de sangue e de pânico a sitiar cada personagem. O Philip Marlowe brasileiro vive à vista do mar e da Avenida Atlântica.
O seu primeiro policial foi de 1996, O Silêncio da Chuva, e recebeu logo dois dos prémios mais prestigiados do Brasil, o Jabuti e o Nestlé. Nessa altura era professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dirigia estudos de psicanálise e de psicologia na universidade, e tinha publicado uma boa lista de livros sobre a matéria. Sobretudo sobre psicanálise…
Não muitos, mas uma quantidade razoável…
Oito…
Alguns de filosofia outros especificamente de psicanálise e, mais especificamente ainda, sobre teoria psicanalítica. A estrutura da teoria psicanalítica era o que mais me preocupou durante a minha vida de académico.
É um freudiano?
Sim, acho que sim. E análise que eu fiz da teoria psicanalítica era exclusivamente freudiana.
Como é que decidiu mudar? Do género «adeus a Freud, agora vou dedicar-me à literatura policial»? Foi uma opção?
Foi uma opção. E deliberada. Eu tinha uma vida universitária bastante longa, já estava na universidade há trinta e cinco anos e já tinha feito o que me tinha proposto fazer enquanto académico, enquanto professor. Dali para a frente a coisa andaria quase como aproveitando o impulso, ladeira abaixo, por si própria… Muita gente faz isso. Então, achei que era a altura de fazer um corte com a universidade e com a vida académica, na qual tive um razoável sucesso. Achei que podia sair sem ficar com um sentimento de perda. Que podia fazer mais, que podia fazer outras coisas.
Sem se aposentar?
Bom, a ideia era escrever sem me aposentar, sim. A opção que eu coloquei e que correspondia a uma fantasia antiga, era a de escrever ficção. Mas eu nunca tinha escrito ficção de natureza alguma. Todos os meus escritos tinham sido escritos teóricos. O que me fascinava era a abertura, a liberdade que o escritor de ficção pode usufruir. E resolvi fazer uma primeira tentativa. A primeira escolha foi O Silêncio da Chuva. Escrevi e enviei para a editora que eu considerava no Brasil uma das melhores editoras de ficção...
A Companhia das Letras…
Isso. Nunca esperei que acontecesse o que aconteceu. O livro ganhou dos prémios e isso foi como um aval da comunidade literária, dizendo que eu poderia escrever, que eu podia continuar escrevendo. Aí, eu achei que era incompatível continuar a escrever ficção e manter a vida académica, Eu era coordenador de um curso sobre psicanálise, orientava teses, fazia conferências… Era impossível. Então, saí da universidade e me aposentei.
Só nessa altura…
Só nessa altura. Depois de ter escrito O Silêncio da Chuva e de me terem proposto continuar a escrever ficção de uma forma, digamos, profissional. Pelo menos não amadorística.
Disse que foi uma opção deliberada. Mas porquê policial?
Porque eu sempre gostei de literatura policial. Desde que comecei a minha vida académica, todas as minhas leituras académicas sempre foram paralelas à leitura de literatura policial. Desde os meus dezasseis anos que sou um leitor de literatura policial, Dashiell Hammet, Raymond Chandler sobretudo. E a literatura policial fascinava-me e fascina-me até hoje pelo facto de o seu cerne ser constituído por um conjunto de questões que eu considero fundamentais: sobre a morte, o assassinato, a sexualidade…
No seu caso, ainda por cima, sobre o desaparecimento. O desaparecimento é uma categoria sempre presente nos seus livros… Há muitos desaparecidos.
Isso é verdade, o desaparecimento é uma categoria. Essas questões são fundamentais. Habitaram o mito, a poesia arcaica. Todos os grandes autores trataram essas categorias central ou marginalmente, mas eu acho que a literatura policial trata delas de uma forma absolutamente desprovida de qualquer disfarce.
José Cardoso Pires dizia que, em última instância, toda a literatura é policial…
Eu concordo plenamente. E Borges dizia isso também: que no fundo o romance policial é o único que tem uma estrutura formal definida, como se fosse o modelo do próprio romance. Não sei até que ponto é que se pode estender a estrutura do romance policial à do romance em geral, mas parece-me haver quase uma dependência. E, pessoalmente, é uma estrutura que me agrada profundamente.
E, depois, temos um caso especial, o do delegado Espinosa… Porquê Espinosa? Era um dos seus filósofos, na universidade?
Eu tenho uma paixão particular por Espinosa, sim. Toda a minha vida universitária foi dividida entre a filosofia, por um lado, e a psicologia e a psicanálise, por outro. Ora, Espinosa é um pensador sem igual. Ele é um dos grandes génios da filosofia, um homem de uma coerência e de uma consistência espantosas. E sobretudo um ser humano absolutamente invejável, de uma integridade ética notável, a toda a prova. Espinosa reuniu sempre, para mim, o máximo da racionalidade e o máximo da sensibilidade. E essa integridade. Ele conseguia ser intenso e íntegro ao mesmo tempo, o que é raro, raríssimo. Então, o delegado Espinosa é uma homenagem ao filósofo, sim – porque é também um homem íntegro. Apesar de ser um burocrata, um policial pertencente ao aparato do Estado, um homem de gabinete e de estar ligado à polícia que é atingida pela corrupção, ele é um sujeito íntegro. Ele, de alguma maneira, diz que é possível ser íntegro.
Então, temos um Espinosa, com nome de filósofo, transformado em investigador policial. Em personagem dos seus livros. Num deles, justamente O Silêncio da Chuva, uma das personagens, Alba, que pessoalmente tenho pena que tenha desaparecido nos livros…
…Era fascinante, sim [risos]…
…É Alba Antunes, professora numa academia de ginástica aqui de Copacabana, curiosamente, a única personagem que reconhece o nome do filósofo… É a primeira vez que aparece justificada a presença de Espinosa. E logo por uma mulher jovem, com um apetite sexual interessante, bonita… Não por um bibliotecário…
Mas tinha de ser, tinha de ser. Eu gosto de Espinosa. Não podia imaginar a cena de outra maneira, muito séria, chata, académica. Alba é bonita, com aquele apetite sexual todo, teria de ser ela a encontrar a referência ao filósofo, claro…
Há um universo curioso criado à volta de Espinosa. Não só à volta das suas investigações, dos seus inquéritos, mas também em volta de si próprio. Ele é o epicentro de um universo em que entram as mulheres, a comida (a relação de Espinosa com a comida), e o próprio Rio de Janeiro. É um novo Rio, não aquele dos postais, da bossa-nova, dos turistas de Copacabana. O que mais me surpreendeu é que o Rio, sobretudo a zona Sul (o Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon), aparece transformado num cenário melancólico, romântico. É uma nova imagem do Rio…
Acho que essa imagem é a que mais me conforta, sim. Você coloca o Espinosa como epicentro desse universo, acho a imagem perfeita. Ele não é necessariamente, nos romances, o personagem mais importante, mas é o personagem em torno do qual giram os outros todos, alguns mais importantes do que ele para o desenvolvimento da história. A própria cidade forma um contexto para Espinosa. Essa cidade, sobretudo a Copacabana de Espinosa, não pode ser de cartão postal, embora seja impossível retirar a beleza do Rio, que é uma beleza que sempre me impressionou, que não se pode esconder. A beleza é quase uma doença do Rio. E depois tem esse lado feminino do Rio, de Copacabana… Isso eu não posso eliminar, embora a cidade não seja redutível a isso. Copacabana é um cosmos plenamente habitado, cheio de gente. Não apenas turistas e gente rica, mas também por uma vida extremamente rica, com o seu submundo muito complexo. Quem vê as ruas de Copacabana não o nota ao primeiro olhar, mas ele está lá. E tem esse tom que você assinalou, e que é raro mencionar-se, que é um tom melancólico…
Espinosa tem uma relação melancólica com essa parte do Rio, com a Gávea, com Copacabana, com fragmentos de Ipanema…
Talvez uma contrapartida em relação à sua beleza extrema, sim… À pressão excessiva da beleza.
Há um sábado, em Vento do Sudoeste, em que Espinosa toca essa melancolia: não há sol, chove de vez em quando, o vento vem da Gávea e atravessa as esplanadas da Avenida Atlântica. Isso é novo na chamada literatura do Rio, que normalmente dá destaque à zona mais pobre (estou a pensar no caso do Paulo Lins, com A Cidade de Deus) ou então tem um ar high-society. E há esse bairro, o de Espinosa, o Bairro Peixoto…
O Bairro do Peixoto é um microbairro dentro de Copacabana. É um nome inapropriado, porque não chega a ser um bairro, é apenas um pequeno conjunto de dois quarteirões com uma praça no meio, bem interessante. Eu penso no Bairro do Peixoto como uma cidade medieval, com a muralha e, no meio, os seus prediozinhos de dois ou três andares, não mais, com o seu verde e que tem uma vida própria. Espinosa vive aí, a poucos metros da delegacia em que trabalha.
Espinosa é fascinante para as mulheres. Há leitoras suas que ficam fascinadas com aquele figura de solitário, divorciado, desprotegido, rodeado de livros empilhados e de comida congelada…
Não sei porque é que ele fascina as mulheres, tanto em Portugal como aqui no Brasil, mas é um facto, sim…
O senhor é psicanalista…
Bom… Talvez por causa desse desamparo, um desamparo fundamental que ele não consegue disfarçar. Isso, aliado à sua preguiça descontraída é que pode aumentar a dose de melancolia.
Provoca um sentimento maternal, é isso?
É possível... Todo o sentimento de desamparo pede alguém que proteja, que acolha. O desamparado pede sempre sobretudo para ser acolhido e o Espinosa talvez provoque essa coisa feminina de acolher… A mulher, eu acho sobretudo acolhedora. E Espinosa é um excêntrico desamparado. Aliás, mais do que um excêntrico na própria polícia, ele é um excêntrico no mundo…
Ele não é uma figura típica na polícia…
Não, de maneira nenhuma… É um estranho, um intelectual. Não usa os métodos da polícia mas, ao mesmo tempo, ele continua lá, na polícia. É um excêntrico no ninho, mas não sai do ninho.
Há uma relação estranha com a comida. Não é gastrónomo, como Nero Wolfe. Não é um cozinheiro, como Pepe Carvalho. Mas a comida é uma preocupação permanente, ele tem uma boa relação com a comida. Em O Silêncio da Chuva Espinosa estabelece os seus três níveis de gastronomia – alemã, quando compra carnes frias na charcutaria; síria ou libanesa, quando compra kibe ou esfiha numa barraquinha de rua; ou italiana, quando descongela uma lasanha à bolonhesa em casa…
Eu gosto de comida italiana, de comida árabe e de comida alemã. Na verdade, a marca dessas três gastronomias tem a ver com o carácter prático dessas comidas. São coisas prêt-a-porter, sem precisar de uma empregada, sem precisar de cozinhar, sem precisar de trabalhar. A marca fundamental da relação de Espinosa com a gastronomia é essa: sem trabalho.
Mas não é uma relação de tédio…
Nunca, nunca… Ele tem sabor, preza muito a comida, e quando quer comer bem – o que acontece muitas vezes – vai a um restaurante italiano… A comida tem a ver, suponho eu, com essa necessidade de protecção sentida por Espinosa: refeições, ritmos, sabor, calor, qualquer coisa que enternece o corpo.
E o mundo das mulheres… Irene é a grande mulher de Espinosa desde que se conhecem em Vento do Sudoeste. Desde essa altura que se encontram e o Garcia-Roza é como que o biógrafo dessa relação sem prazo nem medida. Em Uma Janela em Copacabana Irene e Espinosa quase parecem um casal normal, mas no livro seguinte regressam ao seu «estado puro», ou seja, ao seu estado flutuante…
A biografia amorosa de Espinosa é uma das poucas coisas que, nos livros, mantém uma certa historicidade. Irene está presente em quase todos os livros, menos no primeiro. Daí para a frente aparece em todos e é a única personagem (com o polícia Welber) que pode ter uma biografia.
Eu tenho pena que tenha perdido a Alba Antunes…
Também eu… Alba é uma personagem forte que aparece no primeiro livro, no Silêncio da Chuva, mas que não tem sequência em livro nenhum. Sequência só o próprio Espinosa, o Welber e a Irene.
Mas Welber não é uma espécie de Watson de Sherlock Holmes…
Não, não é. Trata-se de uma relação entre o polícia mais velho e o polícia mais novo, com uma certa ternura, dedicação, como se o Espinosa o adoptasse como aquela pessoa em que ele deposita toda a confiança. Espinosa vive no seio de uma corporação policial em que grande parte está manchada pela corrupção, e não se sente confortável com os colegas de trabalho, de quem desconfia sempre, ou de quem tem de desconfiar…
…o que é o tema em Uma Janela em Copacabana e em Achados e Perdidos, sobretudo…
Apenas dois polícias lhe merecem confiança. Há um terceiro, que só aparece no último, O Perseguido… Mas esses são os que ele destaca, sendo que, no caso do Welber, Espinosa deposita toda a confiança. É um meio muito esquizofrénico, em que a polícia não trabalha apenas com suspeitos externos (os criminosos, os homicidas, os ladrões), mas também com suspeitos no interior da corporação. Muitas vezes suspeitos íntimos. A polícia vai combater o mal, mas esse mal está muitas vezes dentro da própria polícia, o que cria uma situação absurda muitas vezes, porque o mal deixa de ser o estranho para ser, também, o íntimo, aquele que está a seu lado, com quem conversa enquanto toma um café. Se você não se defende disso, está perdido, envolvido nas malhas dessa corrupção. É uma situação desconfortável.
O mal que vive ao lado é um tema omnipresente nesses livros, e logo no primeiro livro, O Silêncio da Chuva, é representado por Aurélio, um velho amigo de Espinosa…
O Aurélio é um personagem que encarna todo o mal: inteligente, afável, companheirão, íntimo. E, no fundo, é a imagem do mal. Todos temos essa presença permanente, ao nosso lado. O problema não é o de se saber em quem confiar, mas o de não se saber de quem não desconfiar. Espinosa vive rodeado desse pânico.
E há esse outro lado de Espinosa, o da solidão extrema…
No caso da polícia, no caso do seu trabalho, é uma espécie de protecção permanente. Através da solidão, ele defende-se do contágio de um meio doente e abjecto. Na sua vida particular, acho que isso se deve ao facto de ele ser um céptico que não tem grandes ilusões a respeito da vida, ou dos outros, ou do amor, ou das suas próprias leituras.
Mas não é um cínico, ou seja, não é um cínico como os cépticos do policial americano, como Marlowe. É céptico como os heróis de Montalbán ou dos livros do comissário Montalbano…
É verdade, porque esse cepticismo faz dele um crítico. É possível que esse cepticismo produza um certo afastamento em relação aos outros, porque um céptico está condenado a poder levar as suas críticas até ao fim. Por isso, ele afasta-se dos outros, para se defender de ter de levar as críticas até ao fim. Mas ele não é um profissional absolutamente seguro, de qualquer modo. Ele sabe que qualquer investigação é um caminho no fio da navalha.
Aliás, ele falha bastante durante as investigações…
Sim, porque Espinosa não é o polícia infalível. É o falível, justamente. É esse sentimento de falibilidade, a percepção de que não é o grande génio de Poirot, um herói como Marlowe, de que é um homem comum investido de um certo poder, que o leva a ser visto como um homem que aceita o seu destino, a sua solidão, a sua timidez diante das mulheres (que são sempre mais ousadas, de resto), até os seus medos…
É um polícia credível?
Acho que sim. Quer dizer, não é impossível encontrar um Espinosa na polícia brasileira. Eu, inclusive, encontrei um que, infelizmente, morreu num acidente de automóvel. Encontrei-o durante as primeiras pesquisas que fiz para desenhar o personagem.
Fez muitas pesquisas?
Fiz algumas. Não propriamente pesquisas, mas entrevistas em delegacias… E encontrei um delegado que me espantou. Estávamos a falar sobre os métodos policiais, a investigação criminal propriamente dita e, a certa altura, dou com ele a dizer-me: «O senhor sabe, a nossa actividade não é de episteme, é uma actividade de dóxa, nós trabalhamos com a opinião e não com o conhecimento.» Achei espantoso um polícia dizer uma coisa daquelas, lidando com a oposição entre conhecimento e opinião, inclusive citando os termos gregos, eu fiquei perplexo… Ele era real, existia, era polícia. Lamentavelmente morreu num acidente de automóvel. Às vezes a opinião banal sobre a polícia – de que tudo é corrupção, de que se trata de gente sem formação e sem escrúpulos – também pode ser um pouco injusta. Encontram-se, digamos, excepções fulgurantes…
Essa desconfiança também acontece com outras profissões como, por exemplo, os psiquiatras. Um dos seus livros, O Perseguido, tem como personagem principal um psiquiatra… Tem a ver com a sua vida profissional anterior?
Não propriamente, porque eu fui sobretudo um teórico, interessei-me sobretudo pela psicanálise, nunca exerci clínica… O psiquiatra vive numa situação de ambiguidade, vive numa zona de fronteira entre a sanidade e a loucura. Tal como o polícia, vive numa outra zona de fronteira, entre a criminalidade e o desejo de castigar ou de compreender. O polícia e o psiquiatra vivem nesse limiar que é fácil transpor e violar, e isso é que é perigoso – essa diferença sem diferenças absolutamente definidas. E, num pequeno lapso de tempo, já se está do lado de lá sem se saber se está do lado de lá ou do lado de cá. Nesse livro, o plot, a história, vive nessa região de fronteira que idealmente separa esses dois mundos, mas que se esvai muito rapidamente, até que mal e bem ou sanidade e loucura se confundem e passem a ser um mundo só. Quem é o louco e quem é o psiquiatra, quem é o paciente e quem é o médico, quem persegue quem? Essa paranóia que está presente não só no mundo psiquiátrico como, também, no mundo policial, eu acho que não há nem necessidade de ter uma experiência clínica. Não são barreiras, são fronteiras muito facilmente transpostas, pouco claras, pouco nítidas. Isso é definitivo para marcar o isolamento do Espinosa, que procura protecção permanentemente, e às vezes aparece como um personagem um pouco conservador, justamente porque sabe que é fácil pisar o risco e não regressar.
Por outro lado, a história de O Perseguido é uma história familiar trágica…
Sim, completamente trágica, isso mesmo. Nem é propriamente policial, no sentido em que não há um enredo tradicional. Os personagens vão desaparecendo, toda a gente da família vai desaparecendo. Dos cinco livros, O Perseguido é o mais inquietante, para mim. Talvez até o mais pesado…
Estou a ver na sala onde trabalha um mapa ao pormenor da zona sul do Rio, a zona onde deambula o seu personagem…
É um mapa de Copacabana. Só de Copacabana.
Num dos seus livros, O Perseguido, aparecem mapas de Copacabana para mostrar melhor onde se situa a acção…
Para que os leitores se situem… Neste mapa, aqui na parede, eu vejo cada prédio de Copacabana, cada beco, cada jardim. Ele tem a localização de cada parede, é um retrato do espaço em que o Espinosa opera. No máximo tomo como referência esse mapa, não uso muitos outros materiais além deste. Só memória. E imaginação. Eu nasci em Copacabana, cresci em Copacabana e morei em Copacabana toda a vida…
Mudou muito, Copacabana?
Muito, muito… Quando eu era menino não havia prédios em Copacabana, e hoje só há prédios. É raro encontrar uma casa. A área alberga uma concentração humana espantosa, uma quantidade de gente inacreditável para o tamanho do bairro, que é muito pequeno. É um meio pequeno. Atravessa-se facilmente a pé nos dois sentidos, do mar à montanha e de uma ponta à outra. Mas eu passeio muito pelo bairro. O meu próximo livro vai ser ainda mais concentrado em Copacabana…
Ainda mais?
Ainda mais, no meio de Copacabana, perto do Bairro Peixoto, onde mora Espinosa, mas trata-se de uma história sem Espinosa…
Isso é uma traição aos leitores…
Provavelmente, mas decidi dar-lhe umas férias… É um risco necessário de correr porque tenho um certo temor de que o personagem que se trabalha em todos os livros comece a cansar. Ele comece a cansar-me. Eu comece a cansá-lo. E ambos cansem os leitores. Pelo perigo da repetição. Isso acontece quando a criação dá lugar à produção, e é um perigo fatal para um escritor, penso eu. Tenho muito medo disso. Quando abandonei a escrita académica foi precisamente para me livrar da produção intelectual como uma espécie de linha de montagem, e partir para a criação ficcional pura, o que era uma coisa nova em mim…
Muitas vezes, o que os leitores de policiais procuram é a repetição de uma fórmula e de um conjunto de circunstâncias, de um processo de investigação… Ou seja, o leitor de policiais gosta de um certo grau de previsibilidade para averiguar até que ponto o autor é capaz de ludibriá-lo…
O que nós procuramos no romance policial é o facto de ele para o seu cerne, aquilo que é o cerne de cada um de nós. E fazendo isso cruamente. Sem grandes fantasias, sem grandes farsas. Isso é a marca fundamental do livro policial. Agora, concordo que a repetição tem um certo peso, sim. O Rex Stout, com o Nero Wolfe, consegue uma repetição infindável, são cerca de oitenta livros, e ficamos sempre fascinados com aquilo…
…e não se trata de um bairro como Copacabana, mas de uma casa na Rua Trinta e Cinco…
Pois é… Uma casa. Repetição fabulosa, não? Bom, mas eu não pretendo matar o Espinosa, mas só dar-lhe umas férias, ele deve estar um pouco cansado de mim. Vai continuar a existir, até porque tem admiradores. Sobretudo admiradoras.