terça-feira, fevereiro 01, 2005

O Brasil mais longínquo




O gaúcho Luiz Antônio Assis Brasil é o autor de O Pintor de Retratos, publicado pela Ambar: é a história de um retratista italiano que acaba no Rio Grande do Sul como fotógrafo dos horrores da Guerra dos Farrapos. Em breve será publicado A Margem Imóvel do Rio, entretanto finalista do prémio Jabuti, um romance sobre o Brasil mais longínquo, o do pampa e da serra gaúcha do século XIX.



ENTREVISTA DE FRANCISCO JOSÉ VIEGAS



O seu livro O Pintor de Retratos foi anunciado como a primeira parte de um díptico sobre a história do Rio Grande do Sul. A segunda parte seria A Margem Imóvel do Rio. Mas O Pintor ocupa, de qualquer modo, um lugar especial na sua bibliografia…
Sim, porque a partir de O Pintor de Retratos eu fiz algumas alterações substanciais em matéria de linguagem, de estilo, ou de forma, se quiser, ao que eu vinha praticando – uma escrita mais abundante, copiosa, neo-barroca. Ou barroca, como é a América do Sul. A partir de O Pintor de Retratos estou a trabalhar noutra dimensão…

…capítulos mais curtos…
Capítulos mais curtas, frases mais curtas, a procura do essencial…

Mas também muito mais cinematográfico…
Fundamentalmente trabalhando com cenas e pouco com resumos, para usar a linguagem académica. Fiquei extremamente feliz porque aconteceu um facto inédito na minha, digamos, carreira de vinte livros de ficção. É que as críticas foram boas, todas as críticas foram muito boas, e isso significou para mim que se trata de uma passagem importante na minha obra.

Durante muito tempo, o Brasil era, aos olhos dos europeus, um triângulo irregular cujos vértices seriam São Paulo, o Rio de Janeiro e o Nordeste. O Rio Grande do Sul ficava muito de fora…
Isso é verdade. Acho que o Rio Grande do Sul ficava fora até do próprio Brasil. O Rio Grande é uma região completamente atípica para os olhos europeus. Pela paisagem, pelo clima, pelas nossas relações culturais, que são muito mais intensas com Buenos Aires e com Montevideu, do que com o Rio de Janeiro ou São Paulo. Eu sinto-me melhor em Buenos Aires do que em Salvador. Buenos Aires e Salvador estão muito mais próximas de Porto Alegre do que a capital do meu país. Nós temos uma cultura do pampa – que invade o Uruguai e que chega ao norte da Argentina – e que significa, também, um modo de ser completamente diferente daquilo que os europeus imaginam sobre o Brasil.

Quais são as marcas dessa cultura?
Um instinto de liberdade. Essa é a marca fundamental. No Rio Grande do Sul sempre tivemos problemas com o Brasil…

Todas as revoluções brasileiras começaram aqui… Ou passaram a maior parte do tempo aqui, no Rio Grande…
Todas. Todas foram deflagradas aqui. E o Rio Grande do Sul foi independente do Brasil durante dez anos, foi a República Rio-Grandense, de 1835 a 1845. Então, esse instinto de liberdade é muito forte. E nós somos brasileiros porque desejamos, porque fizemos essa opção. Depois, nós temos a questão da língua: e nós temos uma literatura que dá sentido a essa cultura. Temos um sistema literário próprio.

Nesse sistema literário estão o Érico Verissimo, Moacyr Scliar, Luiz Antônio Assis Brasil, Tabajara Ruas?

Sim. E é um sistema auto-suficiente, o que só pode acontecer no Rio Grande do Sul. Nós temos escritores, editores, distribuidores, bibliotecas… Por uma razão muito simples: porque o Rio Grande do Sul tem a maior classe média do país, uma universidade pujante. Hoje, um escritor pode pensar em fazer uma carreira de escritor no Rio Grande do Sul independentemente do próprio Brasil.

Como se fosse noutro país?
Como se fosse noutro país, exactamente.

Mas, no Brasil, pelo menos até há pouco tempo, um autor do Rio Grande do Sul seria o representante de uma espécie de literatura regional…
Claro, claro… Mas o que se vai fazer? Não somos nós que estamos a perder. Se você pegar a lista dos livros mais vendidos na revista Veja, encontra as primeiras posições ocupadas sempre por autores gaúchos: o Luis Fernando Verissimo, a Letícia, a Lya Luft… E vivem no Rio Grande do Sul.

A literatura do Rio Grande do Sul não tem aquele «apelo turístico» que tinham os romances de Jorge Amado…
Não, nem pensar. Mas se vir bem, o ciclo nordestino acabou há muito, embora ainda existam nomes importantes, como o João Ubaldo Ribeiro, mas pouco mais. Existe aqui, em Porto Alegre, a sensação de estarmos a criar uma literatura que tem alguma coisa a dizer ao resto do país e que não se desliga da sua história.

O seu Pintor de Retratos é um desses casos…
É uma história do Rio Grande, sim.

Passa-se num cenário de grande brutalidade, como é a guerra dos Farrapos…
E faz uma pergunta: o que é ser civilizado e o que é ser bárbaro? Nós vivemos no Rio Grande do Sul uma revolução sangrenta, absolutamente brutal, em que as pessoas se degolavam no pampa, e isso põe em causa o que penso sobre a minha formação intelectual. As minhas raízes são europeias, eu vivo num espaço – que só trocaria talvez pelos Açores – existencial e cultural que é marcado por uma profunda barbárie. Essa é a tensão que habita todos os meus livros. A tensão entre civilização e barbárie.

E aparece essa fotografia espantosa, a foto de um prisioneiro a ser degolado durante a guerra dos Farrapos, que é central no seu livro…
Que é a «fotografia do destino», como ele a chama.

Depois desse livro, já publicado em Portugal, vem A Margem Imóvel do Rio. Uma viagem pelo Rio Grande…
Fascina-me a viagem, o deslocamento, as tensões que isso provoca. E o Rio Grande no século XIX era uma paisagem devastadora. Essa história nasceu do nada, de uma conversa habitual entre estancieiros, ou fazendeiros, como se diz no Brasil: todos dizem que o imperador, durante a guerra do Paraguai, esteve nas suas fazendas. O cronista do Imperador vem procurar um Francisco da Silva a quem D. Pedro teria prometido o título de Barão da Serra Grande… Vinte anos depois de ter lugar essa promessa. E vem procurar o tal Francisco da Silva. Só que acaba por encontrar vários Francisco da Silva…
A Amazónia árabe

O avô de Milton Hatoum partiu do Líbano, de Beirute, e um ano depois chegava a Manaus. Estávamos no princípio do século XX. Em Relatos de Um Certo Oriente e em Dois Irmãos, publicados em Portugal pela Cotovia, Milton Hatoum assume essa tradição que continua a surpreender aqueles que pensam que o Brasil começa no Rio de Janeiro e acaba em Salvador.



ENTREVISTA DE FRANCISCO JOSÉ VIEGAS


Em qualquer um dos dois romances, Relatos de um Certo Oriente e Dois Irmãos, escreve histórias sobre a recordação. É tão importante assim para si essa recordação da infância árabe, libanesa?
Eu acho que a literatura é movida pela memória. No primeiro romance, Relatos de Um Certo Oriente, há uma frase de um personagem que diz «a vida começa verdadeiramente com a memória» e, bom, eu sou habitado pela memória, nós somos habitados pela memória. «Memory you have the key», como disse o poema de Auden. A memória é quase um romance à mesa da imaginação, porque a memória também trai, ela não diz exactamente aquilo que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. E o romance é uma história do como «se» tivesse acontecido, alguma coisa que, enfim, aconteceu na imaginação, na nossa invenção.

O leitor pode procurar alguma autobiografia nos seus romances?
Pode. Mas nunca vai achar uma autobiografia, porque a autobiografia também é uma invenção. A autobiografia em si já é o registo de alguma coisa passada, e o registo daquilo que passou é, sem dúvida, um espaço da invenção. Ele permite, o tempo passado, como também exige, um voo da imaginação. Então, mesmo aqueles relatos mais autobiográficos, são permeados de mentiras. O mais importante é que essa mentira tenha um teor de verdade. Que seja uma mentira convincente, que faça parte, vamos dizer, da experiência do narrador. Não digo do autor, mas da experiência do narrador. Os meus romances, na verdade, não são autobiográficos, têm traços da cultura árabe, do imigrante libanês na Amazónia, do imigrante português também, porque a Amazónia é essencialmente portuguesa…

Provavelmente é das regiões que manteve durante mais tempo a presença portuguesa…
É a que manteve durante muito tempo um vocabulário português e indígena ao mesmo tempo. Nós não fomos influenciados por outras imigrações, como a italiana, a alemã, enfim, espanhola, embora haja também imigrantes desses países na Amazónia. O predominante é o português, quer dizer, os vizinhos portugueses da minha infância, que estão no Relato de Um Certo Oriente, onde eu falo das casas que frequentava, da comida portuguesa, do sotaque português, das lembranças de Portugal, do Minho, dos minhotos…

O sector mais imigrante do Brasil nessa zona era minhoto, de facto.
De Póvoa do Varzim havia muitos. Da Serra da Estrela também… Não sei porquê... Eram vizinhos amigos da minha família e nós frequentávamos a casa deles e vice-versa…

O Milton hoje vive em S. Paulo, em Higienópolis. Um bairro tranquilo, seguro, bonito. Com árvores e tudo. Mas há pouco dizia-me que sentia falta do Amazonas.
Aqui em S. Paulo não há mais horizonte. Você tem que erguer a cabeça para enxergar o céu. É uma cidade monumental, ela tem um lado escultural e feio também, porque não é uma cidade bonita. É uma cidade gigantesca da qual a natureza foi banida, ao passo que quem vem da Amazónia, ou de uma região onde a natureza é muito forte, muito presente, S. Paulo é uma cidade muito dura. Mas eu morei aqui na década de setenta. Morei dez anos em S. Paulo.

E durante esses anos, que fez em S. Paulo, estudava?
Eu estudei Arquitectura. Sou arquitecto. Exerci muito pouco minha profissão de arquitecto. Eu abandonei a arquitectura pela palavra…

Foi uma boa troca?
Acho que foi porque eu não gostava de projectar, não tinha a paixão pelo projecto como eu tenho a vontade e o desejo de escrever. E depois morei em vários lugares da Europa. Em Madrid, em Barcelona, morei em Paris vários anos…

Como foi parar à Europa?
Ganhei uma bolsa de um instituto de Madrid, o Instituto Ibero-Americano. E fui passar seis meses a Madrid, depois fui a Barcelona e trabalhei lá dando aulas de português, traduzindo um pouco para o espanhol. Depois fui para Paris. E de Paris eu voltei para Manaus. Depois de quinze anos de ausência. Mas foi na Europa onde eu me tornei escritor porque…

… porque teve saudades de Manaus?
Comecei a sentir falta do vocabulário amazónico, das paisagens da infância, daquilo que é essencial para um escritor. Porque eu acho que um escritor, todo mundo ficcional dele, todo o universo ficcional, está presente na sua infância, e na sua juventude. É como se ele vivesse vinte e cinco, trinta anos, e depois passasse o resto da vida escrevendo sobre essa primeira etapa da vida. Então eu sentia muita falta dessa vida que não existe mais, porque toda a infância é um paraíso perdido para sempre. Como dizia Proust. E já começava a sonhar em francês, eu achei isso, muito perigoso. Porque não conseguiria, jamais, escrever em francês.

Achou que estava a perder alguma identidade?
Não exactamente isso, porque a nossa identidade ela é tão difusa, pertence a tantas culturas, pelo menos a minha, eu que sou filho de imigrantes, que na infância convivi com vários idiomas, com o árabe, com o francês falado pela minha avó e, sobretudo, com o português…

Para o leitor não brasileiro -- provavelmente também para o leitor brasileiro --, o universo de que fala é completamente desconhecido, sobretudo do ponto de vista da literatura brasileira? Durante muito tempo, em Portugal, a literatura brasileira era dominada pelo chamado «paradigma baiano». Há uma certa transferência, depois para o eixo Rio-S.Paulo, mas tudo o que saía desse universo não era brasileiro. Viveu essa experiência de falar de uma realidade de que as pessoas ignoravam?
Quando eu publiquei o meu primeiro romance, foi uma surpresa. Foi uma surpresa para a crítica e para o leitor. Porque os críticos se perguntaram, como é que da Amazónia, de onde só se esperam histórias sobre índios e seringueiros e aventura da floresta, surge um romance sobre a emigração, sobre a memória, um drama familiar…

Um drama familiar, e a memória, mas desse ponto de vista da cultura árabe e libanesa…
Sim, mas acontece que nos meus romances, os imigrantes já são adaptados ao Brasil. O drama deles não é essa volta às origens…

Mas os seus romances são sobre a família. Esse universo reproduz, provavelmente, muito da cultura árabe.
Sim, muito da cultura árabe misturada com a cultura brasileira da Amazónia. Porque aí eu acho que isso é o tema de muitos ensaios sobre o meu trabalho. Essa cultura híbrida, essa literatura híbrida, que é a literatura de um país também híbrido.